Estudo indica exame de fezes para autismo

A biologia oferece fonte inesgotável de fascínio. Duas décadas atrás, sob a égide do Projeto Genoma Humano, ninguém diria que bactérias têm forte associação com transtornos do espectro autista (TEA) ou que exames de fezes poderiam rivalizar com testes genéticos para diagnosticá-los.

A perspectiva foi aberta por estudo de Qi Su publicado segunda-feira (8) no periódico Nature Microbiology. O título não era convidativo, mas vá lá: "Marcadores multirreino e funcionais da microbiota intestinal para transtorno de espectro autista".

Estima-se que, em cada grupo de cem adultos, um manifeste alguma modalidade de TEA. Muitos fatores genéticos e ambientais parecem contribuir para esses transtornos de diagnóstico difícil. No caso de crianças, ele pode demorar e ocorrer só quando elas têm seis anos ou mais.

Microbiota são trilhões de bactérias e outros microrganismos que habitam nossas entranhas. Composições mais ou menos específicas dessa flora intestinal vêm sendo relacionadas com distúrbios como obesidade, depressão e até autismo, e o time da Universidade Chinesa de Hong Kong deu um passo além no último caso.

Primeiro, eles foram além de bactérias e incluíram na análise vírus, fungos e parentes primitivos de bactérias, do reino ✅Archaea. Sua amostra incluiu 1.627 crianças de 1 a 13 anos, com TEA ou não.

Depois, com ajuda de inteligência artificial, identificaram 51 bactérias, 18 vírus, 12 arqueobactérias, 7 fungos e 27 genes microbianos alterados nas crianças com TEA. Em geral, são microrganismos encontrados em indivíduos neurotípicos que se mostram ausentes nelas.

Pesquisadores estão longe de descobrir se o perfil alterado é causa ou consequência dos transtornos. Por outro lado, ele pode facilitar o diagnóstico examinando-se amostras fecais de crianças, com mais de 80% de chance de identificar portadores de TEA, de acordo com múltiplos testes descritos no artigo.

Melhor ainda, surge a possibilidade de aperfeiçoar intervenções para minorar os efeitos comportamentais do distúrbio. Afinal, os pesquisadores identificaram no perfil divergente alterações em duas vias metabólicas (cadeias de interações bioquímicas nas células e entre elas) importantes do cérebro.

Podem-se cogitar, a partir daí, suplementos, dietas, probióticos e até transplantes fecais para recompor algo de uma microbiota neurotípica e, quem sabe, chegar a tratamentos otimizados para cada indivíduo com TEA. Mas há limitações, claro, como o risco de falsos positivos em testes com esse painel de marcadores, estimado pelos autores em 8,7%.

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De todo modo, resulta fascinante penetrar um pouco mais nos mistérios do funcionamento da mente e de seu espectro de variações. O chamado eixo intestino-cérebro, via antes insuspeitada de comunicação direta entre esses órgãos, é uma avenida ampla para desembaraçar emaranhados de complexidades.

O que já não era simples de entender, levando em conta só a contribuição genética da TEA, complica-se ordens de magnitude com a participação de combinações variáveis de centenas de microrganismos e fatores como dieta e criação. Esboroa-se a vã esperança insuflada pelo Projeto Genoma Humano de identificar um ou poucos genes necessários e suficientes para explicar os transtornos.

Pode-se ir um pouco além e cogitar que se encontra em crise a própria ideia de causa, ou determinação, ao menos no que toca à dicotomia tradicional entre corpo e mente, ou, em geral, às questões de biologia humana. É isso que torna fascinante a revelação de novos detalhes, em meio a tanta complexidade.

Há grandeza nessa visão da vida, caberia dizer, repetindo Charles Darwin.

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