Carta ao pai: Um adeus ao homem que me ensinou a pensar e a sentir

Tantas veces me mataron
Tantas veces me morí
Sin embargo estoy aquí
Resucitando

Era o que cantava Mercedes Sosa aos nossos ouvidos, atendendo a um pedido seu, enquanto eu acariciava o seu braço e sentia o sangue ainda a correr, seu pulso ritmado, você já adormecido. Ali transbordava enfim a emoção que havíamos contido, a música me levava às lágrimas numa despedida úmida, a música cobria a infinidade de palavras que trocamos toda a vida, décadas de palavras que emudeciam. Ali esperávamos juntos a chegada dos outros, já avisados do que acontecia, ou esperávamos a chegada do fim. Mas talvez não fosse o fim, era o que a canção dizia, talvez você não morresse, e sim estivesse de alguma maneira ressuscitando, sob minhas mãos frias.

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Tantas vezes mataram você, pai, o mataram ainda tão menino, incinerando os seus avós em campos longínquos, dizimando quase toda a família. Matou você o câncer que consumiu a sua mãe, naqueles anos da infância que insistiram em voltar, vívidos, nos seus últimos dias. Mataram você quando o perseguiram, quando forças obscuras tomaram o seu país e puseram em marcha a grande fábrica argentina de desaparecidos, conduzindo-o ao exílio no Brasil. Matou você seguidas vezes a doença invasiva que ocupou seu corpo e o obstruiu, o alijando de um convívio social mais imediato, físico. Mas eu não quero contar as suas muitas mortes, pai, quero é me aferrar à sua vida, quero falar dessa sua sobrevivência obstinada, do seu ávido desejo de persistir.

Esse desejo foi a marca maior da sua existência, é o que agora entendo, a razão por que você continuou a dar aulas e a atender pacientes e a escrever artigos até o fim, numa vontade imprescritível de se fundir ao mundo, de nele se perder, se confundir. Mas a confusão nunca foi uma opção para você, homem indiscernível de sua lucidez, incapaz de qualquer ideia que não fosse ponderada, refletida até o limite. Até o limite você preservou sua clareza, sua coerência, sua ateia certeza de que nada o aguardava depois da morte, ainda que isso lhe provocasse angústia, medo, adiamento. E foi como parte desse mesmo pensamento que você aceitou para si, e pediu que aceitássemos, sua decisão de ser enterrado em cemitério judaico, mesmo que há muitos anos tivesse rejeitado a religião, sua afirmação de que ainda assim pertencia a um povo, e ao povo.

A nós, a mim, não chegava a importar tanto, porque não é nessa permanência que cremos, não foi essa a permanência que você nos ensinou. Sempre acreditamos, ainda acreditamos, numa vida após a morte feita de memória, de narrativa, uma vida constituída de palavra e de indizível pensamento. Pai, por uma sorte você sabe, porque na última noite eu pude dizê-lo, o tamanho desse legado que você deixa para nós, em nós, essa infinidade de histórias que agora inundam os nossos dias, e povoam as nossas noites com uma indubitável presença onírica.

Para mim, sua figura é tão grandiosa que eu tive que escrever um livro sobre você, e não bastou, e escrevi outro livro sobre você, e não bastou, e aqui me vejo de novo a escrever sobre você, em movimento que já percebo infinito. Você é um homem inesgotável, um gigante cognitivo, para sempre inacessível às palavras, como todo ser pleno e vivo. Você é uma figura complexa sobretudo por seu amor à complexidade, por sua recusa a qualquer raciocínio simples ou óbvio, por sua busca incansável pela nuance, pela perspectiva inesperada — por tudo isso que você soube empregar na psicanálise e na vida íntima. A rebeldia do seu pensamento, em qualquer circunstância, sempre foi para mim chocante e admirável. Você foi um homem sábio, pai, de uma sabedoria até antiquada, em descompasso com o mundo que lhe coube habitar.

Contra toda a obscuridade que insistiu em assediar a sua existência, você foi um homem solar, um homem de gestos calmos e cálidos, de alegrias sinceras, de humor sagaz. De você emanavam compreensão e carinho, embora isso nunca se revelasse de maneira banal, nunca pelo toque impassível ou pela frase fácil demais. Um último presente que você nos deixa são as histórias que agora tantas pessoas vêm nos contar, amigos, colegas, alunos, pacientes, num vasto espalhamento da sua existência por veredas que não pudemos frequentar. Não se conhece por completo a vida de um pai, e talvez por isso nunca acabe o efeito que exerce sobre nós.

À minha mãe, à sua mulher de toda a vida, nem sei dizer o que você pôde ser, eis mais um mundo indevassável aos meninos menores, como eu. O que sei é que, para nós três, para os filhos, tão próximos e tão distintos, você soube ser uma referência única a cada vez, diversamente singular. Ao Emi, você ensinou a arte secular do churrasco, que ele logo transformou em ofício. À Flor, transmitiu a escuta atenta e o cuidado extremo com cada um dos pacientes, numa atenção amorosa a que ela aderiu com fervor e afinco. Quanto a mim, eu poderia dizer que você me ensinou a escrever, quando me incumbiu de dar contornos ao portunhol tortuoso que lhe era tão característico, mas não, foi muito mais que isso. Sinto ou quero sentir que você me ensinou a pensar, me ensinou a olhar o mundo e a tentar lhe atribuir sentidos.

E no momento exato, na iminência do fim, você me ensinou a sentir. Nossas fortes conversas finais estiveram muito carregadas de precisão e racionalidade, você acusou, e então naquela última noite guardamos a razão e conversamos livres, francos, desprotegidos. Depois de muito que nos confessamos, foi você quem disse, com algum cansaço, que tinha uma batalha dura pela frente, e eu questionei que batalha era aquela, e por que era preciso continuar a batalhar depois de tantas conquistas. Porque há tanta coisa que deixei incompleta, você disse, livros que não publiquei, textos que não escrevi. E eu lhe pedi que não se preocupasse tanto, e prometi com firmeza que publicaria seus livros, e completaria seus textos, com as suas palavras ou com as minhas. E você abriu seu sorriso largo, e algo se acalmou em seus olhos marítimos, e você se decidiu a dormir.

Pai, você não despertou dessas palavras que dissemos, e a falta que desde então sinto é inaudita. E, no entanto, a sua existência ocupa a minha vida inteira, neste momento em que escrevo e a cada hora de tão longos dias. Agora sei que estávamos certos, que a permanência que desejávamos é palpável e legítima, a ressurreição é verdadeira. Por toda parte carrego você comigo, você me ajuda a levar as meninas à escola, você volta ao meu lado no carro vazio, juntos ouvimos Mercedes Sosa e choramos lágrimas cristalinas. Por toda parte carrego você comigo, e ninguém nem nada nem doença alguma nem fim nenhum vai me privar da sua companhia.

Aos rituais judaicos do luto eu ainda não quis aderir. Mas tenho usado todos os dias os sapatos pretos que vestia no seu enterro, os sapatos que pisaram a terra com que eu mesmo o cobri — confesso que essa parte do ritual me pareceu guardar um sentido profundo. Essa é a minha roupa de luto, esses sapatos de todos os dias. Olho os sapatos sujos de terra e penso em você, penso que você me acompanha a cada passo, que há algo de você envolvendo os meus pés, prendendo os meus pés à terra, ao chão que compartilhamos. Não me despeço, pai, sei que vamos juntos e que muito ainda conversaremos.

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