O projeto de lei da hipocrisia

Defender a vida é se indignar com os quase 75 mil estupros a cada ano. É se indignar com o fato de que mais de 75% são de menores de 14 anos ou de pessoas sem condições de consentir. É se indignar com a realidade que faz do Brasil um dos países com mais casamento infantil. É se indignar com o número de meninas cuja infância é roubada pela violência ou pela entrada na economia do cuidado, meninas que trabalham em tarefas domésticas, tomam conta de seus irmãos ou são mães antes mesmo de se tornarem adultas. É se indignar com o estigma que mulheres sofrem por serem mães solo de filhos que não conceberam sozinhas. É se indignar com uma sociedade que não protege meninas, não apoia mulheres, não acolhe e não atende todas as vítimas.


Propor uma restrição ao direito constitucional de interrupção da gravidez decorrente de estupro, como pretende o projeto de lei 1904, é ignorar essa realidade. Mais que isso, é perverso propor que o aborto após a 22ª semana de gestação seja equiparado a homicídio. Aventar que uma mulher possa ter punição maior que a do estuprador é imoral. Pensar que uma menina deva passar por medidas socioeducativas nessas circunstâncias é cruel.


Como afirmar que o sofrimento de quem passa por um aborto é maior do que o de uma gestação indesejada, fruto da violência e do desamparo? E, sendo esse sofrimento reconhecido, por que não priorizar o acolhimento das vítimas? Por que penalizá-las?


Como desprezar o argumento de que se trata do corpo da mulher? Há alguma lei que legisle sobre o corpo do homem? A negação do domínio da mulher sobre o próprio corpo é desumanizá-la, transformá-la simplesmente em incubadora. Ignora-se completamente o que é a gestação, sua complexidade, dificuldades e ignora-se até sua beleza.


Quando se fala em 22 semanas de gestação, ignora-se que muitas meninas nem sabem que estão grávidas, não entendem as mudanças em seus corpos violentados. Sabemos que a grande maioria dos estupros de menores de idade acontece dentro de casa, com pessoas de sua convivência, pais, avôs, tios, primos, irmãos, padrastos. Muitas vezes essa vítima não consegue fazer a denúncia, seja pelas relações afetivas com seu agressor, seja pela culpa que nela colocam, seja pela proibição imposta pela família. Quem levará essa menina ao médico?

O que você está lendo é [O projeto de lei da hipocrisia].Se você quiser saber mais detalhes, leia outros artigos deste site.

Wonderful comments

    Login You can publish only after logging in...