Sobre a destruição incessante da cidade, já sem passado e sem memória

 A vista de São de Paulo do alto do edifício Prestes Maia, antiga fábrica de têxtil. A vista de São de Paulo do alto do edifício Prestes Maia, antiga fábrica de têxtil. Imagem: Nacho Doce/Reuters

Eis um dos problemas do tempo, que seja invisível aos olhos. Quem olha pela janela de sua casa não vê mais que o instante, nada sabe dos meses, dos anos, das décadas. Se mora numa cidade movediça e interminável, digamos São Paulo, não vê muito mais que o marasmo, e pode sentir a contraditória paz das paredes batidas de sol, dos edifícios estáticos, das pernas que passam sem destino exato. O movimento incessante das máquinas não é mais que um rumor ajustado à paisagem, às vezes imperceptível, às vezes um pouco incômodo. Só se o sujeito que assoma à janela pudesse ver dez anos num relance, só assim saberia da fúria e da vertigem com que a cidade se consome.

Daí que não estejamos tão chocados, que sigamos a viver em nossa pacífica pressa enquanto tudo ao redor desmorona, tudo se faz pó e do pó ressurge com um brilho falso, digno de desconfiança. Pouco a pouco, e no entanto com velocidade impressionante, a cidade vai perdendo seus velhos traços e ganhando um novo rosto, enquanto nós seguimos inexpressivos e absortos. Pouco a pouco, e no entanto com impressionante constância, a cidade se mata apenas para renascer depois, sem guardar lembrança do crime que a atingiu, do crime que cometeu. Renasce esquecida de sua vida anterior, e vai se tornando uma cidade sem história, mas assombrada pelo passado que já não recorda.

Moro num bairro que já foi feito de casas baixas e comércios simples, como tantos outros, um bairro logo tomado por restaurantes, bares, lojas, pessoas, tudo o que agora desaparece para dar lugar a prédios enormes, com seus muros corpulentos que amedrontam as calçadas. Pelas calçadas continuo a passear, em minha distração conformada, de vez em quando suspirando por um sabor que perco, um trago que não tomo, ou uma lembrança que não me vem mais, só evocada por um lugar que já não encontro. Nada de muito lamentável porque sou um único homem, em minha existência menor. Mas tomemos a imensidão do tempo e do espaço, tomemos a infinidade de habitantes que somos: não será lamentável a perda de tantos sabores e tragos, a perda do passado de alguns milhões?

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