A literatura valorizada no Brasil ainda tem cor, sexo, classe e região

Existe uma filosofia de origem africana chamada Sankofa, cujo ensinamento pode ser traduzido por algo como "não é tabu voltar atrás e buscar o que esqueceu". Tal conceito expressa a sabedoria de voltar às raízes e aprender com o passado, buscando entender o presente e moldar o futuro, potencializando o nosso avançar.

E se tem uma forma e um caminho para potencializar o nosso avanço, sem dúvidas, é por meio da educação. E não consigo enxergar a educação sem livros, sem literatura, sem saberes ancestrais e contemporâneos. Nesse sentido, urge a necessidade de termos intelectuais negros entre as bibliografias escolares e acadêmicas.

Quantos autores negros você já leu? Quantas autoras negras você já leu? Quantas pessoas negras fora do eixo Sul-Sudeste e das grandes editoras você conhece e já se tornou leitor? A literatura valorizada social e academicamente no Brasil ainda tem cor, sexo, classe e região.

Mas, na contramão das estruturas sociais - afinal, estamos aqui para movimentá-las e movê-las -, há iniciativas que buscam evidenciar a literatura produzida por pessoas negras. Deixando um pouco da modéstia em segundo plano, tenho o orgulho de dizer que busco, por meio da minha escrita, da minha voz e dos projetos que procuro desenvolver, ser uma das pessoas que agitam esse universo. Uma agitadora e produtora, cultural e intelectual, que tenta, sempre, abrir espaços para as suas e seus semelhantes.

Tem uma frase que uso sempre como lema, em que digo: sigamos criando e ocupando espaços. Precisamos ocupar os espaços que já existem, mas precisamos, também, especialmente quando o sistema insiste em se blindar contra a nossa presença, criar novos espaços que já surjam pensados por nós, para nós, conosco no centro.

Foi nesse sentido que idealizei a realização do 1º Festival Pernambucano de Literatura Negra, que ocorreu lindamente em 20 de novembro do ano passado, Dia da Consciência Negra. Ocorreu lindamente graças à participação de autoras incríveis e à presença de um público que compreende a importância de ações como essa. Mas, como tudo o que nos envolve aparentemente se torna mais difícil de ser executado, o evento careceu de apoios e patrocínios.

Como comentei recentemente nas redes sociais em uma postagem publicada pelo apresentador e influenciador Ad Junior, em que ele falava sobre a facilidade de eventos liderados por pessoas brancas conseguirem investimentos por parte de empresas, ao passo de que eventos liderados por pessoas negras enfrentam inúmeras dificuldades:

"Exatamente assim!! Ano passado, idealizei a realização do primeiro Festival Pernambucano de Literatura Negra e fui atrás de várias empresas. Adivinha? Quase nenhuma apoiou. Só uma, na verdade. No discurso, são todas apoiadoras da cultura e defensoras do antirracismo, mas na prática, como a gente sabe, a história é outra"

Mas, a despeito dos poucos apoios financeiros e patrocínios que recebemos, entregamos um evento impactante, potente e organizado. Um evento sobre literatura, sobre literatura feita por pessoas negras, sobre literatura feita por pessoas negras mas que deve ser consumida por toda a população. Afinal, isso é ser antirracista e buscar, de fato, por equidade nos mais diferentes campos.

O festival nasceu como uma forma de evidenciar os nossos escritos, de mostrar que estamos aqui produzindo, escrevendo, contando histórias, contribuindo com os saberes, com a intelectualidade e com a cultura.

Autoras negras e autores negros estão aqui, hoje, presentes, vivos. Você está consumindo essa literatura? Está lendo nossas obras, adquirindo os nossos livros?

As escolas e universidades estão incluindo autores negros nas suas bibliotecas e bibliografias recomendadas? Por que ainda é tão difícil ver nosso trabalho ser reconhecido nesses espaços?

Precisamos formar leitores. Precisamos agir para modificar uma literatura por tanto tempo tão embranquecida. E quando digo "precisamos" é assim mesmo, na terceira pessoa do plural. Nós, enquanto sociedade, precisamos assumir esse compromisso.

Tem uma música de Emicida que diz: "é tudo pra ontem". Enegrecer a literatura também é pra ontem. Sigamos criando e ocupando espaços.

💥️*Jaqueline Fraga é jornalista formada pela UFPE, escritora e administradora. É autora de três livros, incluindo o "Negra Sou: a ascensão da mulher negra no mercado de trabalho", obra finalista do Prêmio Jabuti, e o "Movendo as Estruturas". Foi consultora da Unesco e atualmente é repórter do jornal Folha de Pernambuco. Pode ser encontrada nas redes sociais nos perfis @jaquefraga_ e @livronegrasou.

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