Em livro de advogada de Calabresa, mulher protege abusador
Juliana Linhares Colaboração para Universa, em São Paulo
💥️Universa: "Quando se trata de relacionamentos, nem sempre é possível se manter coerente com o feminismo". Esta é uma das frases da protagonista do livro, Alma, uma jornalista feminista. Ela se relaciona com homens que têm desvios de caráter no que se refere a mulheres. Um deles é acusado de estupro. Alma também fala: "Ser objetificada e despertar tesão são parte central do meu prazer com ele. (...) Ele não demonstra muito entusiasmo pela minha inteligência, tampouco se impressiona com o meu sucesso profissional --me quer porque me acha gostosa, e eu adoro isso nele". Todas nós lidamos com sentimentos contraditórios. O tesão não se conecta ao textão, necessariamente, não é mesmo?
Mayra Cotta: Eu não queria construir uma personagem perfeita, uma feminista super coerente. E nem um caso de violência sexual muito evidente, vindo de um cara horroroso. Seria sem graça. Me interessa o que é complexo. E não tem nada mais complexo do que você amar uma pessoa que te faz mal. A objetificação é uma dessas complexidades. Somos construídas socialmente para sermos objeto de desejo. Aí vem o feminismo e diz que esse é um lugar de opressão. E algumas de nós falamos: a gente não pode se deixar ser objetificada de jeito nenhum! Esse é um jeito binário de lidar com a situação. E não é isso, não é um pode/não pode. A objetificação faz parte da construção do desejo. O interessante é a gente conseguir ser objetificada nos nossos termos, de uma forma que seja empoderadora e não opressora.
💥️Há semelhanças entre o ambiente de Alma no romance e o que você transita, já que você é uma advogada que se especializou em casos de abuso sexual, é feminista e tem mais ou menos a idade dela. Estamos diante de uma militante que, por meio deste livro, abre a guarda e fala dos caminhos tortuosos dos afetos?
Toda escrita traz uma exposição da pessoa que está escrevendo. Por mais que a gente construa personagens fictícios é sempre um pouco sobre a gente que se está escrevendo. Participei de grupos feministas militantes, li teoria crítica de gênero; então, esse ambiente faz parte da minha formação. Mas não acredito no feminismo que é entendido como um conjunto de comportamentos individuais das mulheres. Feminismo é sobre mudanças estruturais. Elas precisam acontecer para que a gente possa viver da forma que quiser. Essas ambivalências que a gente sente, as dificuldades em navegar nos relacionamentos, não vêm de uma falha individual nossa, mas da sociedade, que nos educa de maneira a nos impedir de sermos feministas em todas as expressões. Eu não quero nos desresponsabilizar pelas nossas práticas, mas a transformação feminista vai acontecer quando a gente lidar com as estruturas de opressão, e não com o apontamento de dedo nas falhas de cada uma de nós.
💥️Quase nenhum homem do livro presta. Nem nomes você deu a eles. São tratados como "o ex-amigo", "o amante esporádico", "o chefe". A protagonista diz que homens não são amigos entre si --apenas competem--, que só ajudam as amigas mulheres porque querem alguma compensação sexual e que usam as amigas feministas como "escudeiras" para chancelaram posições duvidosas de aliado. Não soa caricato?
Do jeito que você falou, sim. Mas não acho que seja assim que está no livro. Tanto que por esses três homens a protagonista cultiva algum tipo de amor ou admiração. O fato de os personagens masculinos não terem nome é para pensarmos nas posições que os homens ocupam nas nossas vidas. Há diferenças nas relações construídas entre homens e mulheres. Com as amigas, as relações são sempre vibrantes, têm apoio mútuo, correspondência. E as com os homens, no livro, são desbotadas, mais pobres. Não é um ataque aos homens individualmente. Seria muito fácil escrever um livro dizendo que eles não prestam.
Capa de novo livro de Mayra Cotta
💥️Os homens estão incluídos nesse convite ou essas são questões que nós, mulheres, pensamos melhor entre nós?
Espero que homens leiam o livro. O intuito não é fazê-los sentirem vergonha, admoestar publicamente todos os homens, mas fazer com que se reconheçam nessas práticas e entendam a profundidade que elas têm para as mulheres. Propositalmente, os homens do livro não são tão bem construídos quanto as mulheres; eles, além de não terem nomes, não têm falas. Então há esse incômodo de se verem representados de uma forma meio pobre. Eu gosto de brincar com isso. Os homens brancos estão acostumados a serem os grandes protagonistas, e aqui, estão num lugar bem secundário. A leitura é um convite para que eles sejam afetados e venham para o debate.
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