Em torno de uma queijadinha em Sergipe

"Era a sobremesa dos brancos", me contava dona Marieta. Passava um pouco do meio-dia e o dia para ela já havia rendido bastante: já tinha feito dezenas de fornadas de queijadinha, a tal sobremesa. Mas sua rotina ainda iria se esticar por algumas horas.

"Eu só durmo às sete horas da noite", anunciou ela como se revelasse uma extravagância. O momento de despertar, porém, chama mais a atenção: 3h da madrugada em ponto, para começar a trabalhar.

E ai se alguém da sua equipe não estiver pronto para produzir seu famoso quitute quando ela chegar à sua enorme cozinha. É melhor o forno de lenha estar aceso antes de ela entrar no recinto, senão...

"Quer sofrer? Trabalhe com preguiçoso!", diz um dos cartazes pregados na parede de seu local de trabalho, onde ela passa 90% do seu dia. E da boca de dona Marieta saem infinitas variações sobre o tema.

"Eu queria ter 40 anos pra trabalhar por mais 40", me confessou a anfitriã de 80. Incansável, ela não parava de ralar coco enquanto me contava um pouco da sua história.

Fui visitar São Cristóvão (SE), a cidade de dona Marieta, duas semanas atrás com outro objetivo: conhecer de perto um patrimônio da humanidade da Unesco. O reconhecimento veio em 2010.

Sempre me interessei por essa lista da Unesco. A ponto de, em 2008, eu ter sugerido ao Fantástico, programa que apresentava, uma série sobre esses patrimônios pelo mundo, em especial, os ameaçados.

Fui de Sewell (Chile), uma pequena cidade de mineiros sob a neve, aos desertos da Mongólia; de Zanzibar (Tanzânia) a um cemitério de indígenas no Canadá; das areias de Timbuctu (Mali) às de Chan Chan (Peru).

O Brasil tem uma boa coleção desses patrimônios: Ouro Preto (MG), Olinda (PE), Brasília... Mas logo depois que terminei a série do Fantástico, soube que a praça São Francisco, em São Cristóvão, tinha entrado na nobre seleção. E prometi que um dia a conheceria de perto.

Pois bem, esse dia chegou e eu já estava maravilhado com a visita quando fui inesperadamente distraído. Eu estava absorto na explicação da escolha da Unesco, uma rara mistura das arquiteturas coloniais espanhola e portuguesa, quando alguém perguntou se eu já havia provado a queijadinha de dona Marieta.

Subitamente redirecionei minha atenção. Desejei que a visita ao riquíssimo museu de arte sacra da cidade terminasse logo para que eu pudesse provar a iguaria, elogiada como se merecesse, ela também, o título de patrimônio da humanidade.

Em questão de minutos eu já estava na casa de dona Marieta conversando com ela, ouvindo histórias do tempo da sua avó escravizada, que preparava a "comida dos brancos". E com que energia ela me contava tudo!

A mesma energia, diga-se, com a qual ela comandava sua cozinha, um esforço nada vão: quando provei a queijada, revirei os olhos. E imediatamente quis saborear a segunda.

Mundo afora, não foram poucas as delícias que provei: chefs estrelados, cozinheiras de tradição, pratos exóticos, gastronomia natural. Mas poucas vezes tive vontade de escrever um texto só sobre uma pessoa e o doce que ela aprimorou durante toda uma vida.

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Dona Marieta também faz bolachas de tapioca incríveis e uma cocada de forno estupenda. Mas é à queijadinha que eu dedico esta coluna de hoje. Ao sabor e à glória de algo tão simples feito por uma pessoa tão especial e carinhosa.

Que só ficou brava comigo quando eu brinquei que ela estava com a cara meio cansada. "Cansada?", mudou ela o tom, me encarando com desdém e certa irritação. Dois segundos depois, estávamos às gargalhadas.

O que você está lendo é [Em torno de uma queijadinha em Sergipe].Se você quiser saber mais detalhes, leia outros artigos deste site.

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