Oposição venezuelana luta também contra Putin, Erdogan, Xi...

É lindo sonhar. É triste quando o sonho acaba. Colegas meus, acadêmicos respeitados, acreditaram durante uns tempos que Nicolás Maduro seria afastado do poder pela força do voto popular.

Fiz o que pude. Argumentei contra. Ironizei. Recomendei banhos frios.

Nada os demovia. Nas suas cabeças, Maduro iria reconhecer a derrota, abandonar o palácio presidencial e dedicar o resto dos seus dias à contemplação e à poesia.

Vieram os "resultados". Maduro era o "vencedor". Vieram também as repressões e as mortes.

Bateu uma depressão geral. Querem ver que a Venezuela não é uma democracia?

Quando escutei essa pergunta, mandei entrar os enfermeiros. Já nada estava nas minhas mãos, exceto aconselhar descanso e, já agora, a leitura do mais recente livro da historiadora Anne Applebaum, "Autocracy, Inc.: The Dictators Who Want to Run the World".

Vamos ao que interessa: um regime autocrático e cleptocrático, regra geral, só cai com violência. Moderada? Severa? Não interessa. Violência.

Mas a "vitória" de Maduro não se explica apenas pela natureza do seu regime, que jamais deixaria de controlar a narrativa com a fraude e a brutalidade.

Explica-se por um outro pormenor, que Anne Applebaum explica com detalhes: a oposição não lutava apenas contra Maduro. Lutava contra ele, contra a Rússia de Putin, a China de Xi, o Irã de Khamenei, a Turquia de Erdogan e todos os regimes que, de uma forma ou de outra, mantêm a Venezuela a funcionar.

Uma derrota em Caracas seria sentida em Pequim, Moscou e outras capitais. Como tolerar isso?

Eis o ponto de Applebaum: o autoritarismo do século 21 deve ser entendido como uma empresa multinacional que, em nome do poder e da riqueza, vai partilhando informações, pessoal, tecnologia e recursos.

Só para ficarmos na Venezuela, veja só o cosmopolitismo do lugar: o dinheiro é russo; a tecnologia é chinesa; os jagunços são cubanos; até os tratores vêm da Belarus.

Não é caso único. Na Rússia em guerra, por exemplo, os drones são iranianos; os mísseis são norte-coreanos; a defesa diplomática fica a cargo de vários países africanos na ONU; o gás e o petróleo são comprados, a preços amigos, pela China e pela Índia.

No século 20, a ideologia comandava a política entre dois blocos perfeitamente reconhecíveis. Hoje?

Sim, a ideologia ainda serve de verniz para justificar a "multipolaridade" do mundo pós-Guerra Fria. Mas, raspando esse verniz, a principal preocupação dos líderes do conglomerado é afastar dos seus rebanhos qualquer tentação democrática.

Você sabe: aquelas ideias perigosas como "transparência", "direitos humanos", "separação de Poderes", "liberdade de expressão", "multipartidarismo" e outras fantasias que só atrapalham o abuso e a pilhagem.

É isso que explica o arco-íris de regimes que fazem parte da multinacional autocrática. Tem para todos os gostos: comunistas, capitalistas, nacionalistas, monárquicos, teocratas. O negócio é mais importante que as filosofias.

E, naturalmente, há falsos democratas também, que ajudam a compor o quadro nas lavanderias do Ocidente. São aqueles que "não fazem perguntas", escreve Applebaum, com ironia.

São os banqueiros ocidentais que não perguntam de onde vem o dinheiro que cai em certas contas.

São os agentes imobiliários ocidentais que não perguntam de onde vem o dinheiro que compra propriedades em Londres ou na Riviera Francesa.

São os empresários ocidentais que não perguntam de onde vem o dinheiro que compra as suas empresas.

São os clubes de futebol ocidentais que não perguntam de onde vem o dinheiro que traz jogadores a preços estratosféricos para alegria das torcidas.

E são os governos ocidentais, claro, que colocam nas mãos da China ou da Rússia a sua segurança energética ou tecnológica.

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Exemplo: em 2014, Putin invadiu a Crimeia. Em 2015, assinava-se o contrato para a construção do gasoduto Nord Stream 2 entre a Rússia e a Alemanha. Isso é para levar a sério?

Ler Anne Applebaum é um exercício de demolição. Quando muitos discutem seriamente conceitos eruditos de geopolítica —"hegemonia imperialista", "Sul Global" etc.—, eis que surge alguém com números, nomes e fatos.

Só para mostrar como a mais velha profissão do mundo continua unindo ocidentais e não ocidentais, conservadores e progressistas, colonizadores e colonizados.

O que você está lendo é [Oposição venezuelana luta também contra Putin, Erdogan, Xi...].Se você quiser saber mais detalhes, leia outros artigos deste site.

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