De 'fada verde' a cubismo bêbado: como o sóbrio Picasso levou álcool à arte
A inspiração etílica foi, inclusive, tema da recente exposição Picasso: A Efervescência das Formas , montada na Cité du Vin, espaço dedicado à cultura do vinho em Bordeaux, sul da França.
💥️Do santo ao sexo
Em obras adolescentes de Picasso, influenciadas pelo catolicismo, o álcool aparece representado simbolicamente em temas como a transubstanciação do sangue de Cristo em vinho no rito da eucaristia.
Na maturidade, ele exploraria temas da mitologia greco-romana com uma boa dose de sacanagem, tendo o vinho com a função de transformar ou revelar personalidades e comportamentos.
Ao pisar em Paris pela primeira vez, em 1900, o artista de 19 anos traz a rua e a vida mundana para sua obra. Já rejeitara a academia formal, trocando as aulas na Real Academia de San Fernando, em Madri, que considerava enfadonhas, pelo burburinho dos cafés e dos prostíbulos.
Preferiu continuar sua educação artística em visitas ao Museu do Prado, analisando composições de mestres espanhóis como Goya, El Greco e Velázquez.
💥️ Fada verde
O absinto, bebida da moda na virada de século, surge em várias telas do período, conhecido como fase azul. Há diversos bebedores e bebedoras de absinto nas obras da época, figuras absortas, sonolentas e solitárias a olhar para o nada.
O destilado verde já havia servido de motivo para Degas, Manet e Lautrec. A Picasso interessava retratar o desencanto das pessoas esquecidas nos cafés, durante o ciclo mais melancólico de sua arte.
Este destilado conhecido como fada verde , de alto teor alcoólico, causava debate entre sociedade e autoridades, acusado de atiçar alucinações, morbidade e degradação. Enquanto não era proibido (o que aconteceu em 1915, nos Estados Unidos e em vários países da Europa), o absinto foi sorvido por fãs como Baudelaire, Van Gogh, Rimbaud, Hemingway, Proust, Modigliani e Picasso. Uma turma da pesada.
💥️Cubismo bêbado
A década de 1910 representa uma ruptura na trajetória de Picasso e uma fissura na história da arte, com as experiências que formulou ao lado de um novo amigo, Georges Braque, após decidir trocar definitivamente a Espanha pela França. A dupla desafiava o academicismo, ultrajava o bom gosto burguês e estava disposta a quebrar as barreiras da percepção.
A ousadia de apresentar múltiplos pontos de vista de um objeto na tela, embaralhando a ótica e o cérebro, já havia sido testada por Picasso em 1907, na célebre Les Demoiselles d'Avignon . A nova onda, geométrica e fragmentada, seria chamada de cubismo e, nos seus primórdios, desconcertou crítica e público.
A relação com Braque foi radical e fundamental para Picasso, que trouxe cada vez mais a rua e os objetos corriqueiros para as telas.
Embalagens, maços de cigarros, cartões de visitas, recortes de jornal, anúncios publicitários, cordas, cartas de baralho, barbantes e outros elementos foram abundantamente empregados em uma série de colagens do período.
Picasso trazia à sua arte o lufa-lufa dos cafés parisienses e da cidade, em sua visão bêbada e frenética do ambiente. No fragor etílico do momento, vários rótulos de bebidas da época foram representados nessas colagens, como Pernod, Anis del Mono, Suze, Hennessy, Bass e garrafas genéricas identificadas como rum, vinho ou marc, estilo francês de destilado de uva.
Em 1914, às vésperas de sua proibição, o absinto volta a ser tema numa série de seis esculturas de bronze intituladas Copos de Absinto . Em todas elas foi incrustada a pazinha vazada com que a bebida era servida e cada uma foi pintada com cores diversas.
Ao pintar cada escultura de forma diferente, Picasso celebra a liberdade de escolha do indivíduo em relação ao consumo alcoólico. A forma aberta das esculturas sugere a atitude também aberta e política de Picasso sobre o controle de drogas , escreve o crítico de arte Brooks Adams.
💥️Barato com chá verde
Com uma obra tão encharcada de álcool, tornou-se fácil construir a lenda de que Pablo Picasso era um adicto, de que entrava em depressão se não houvesse bebida e sexo. Uma completa bobagem , cravou a modelo francesa Sylvette David, musa de várias composições do gênio espanhol, retratada tanto em formas cubistas quanto acadêmicas nos anos 1950.
Sylvette pinta um quadro jovial, divertido e elegante do mestre. Era um perfeito cavalheiro, seu senso de humor era moleque, espontâneo e contagiante , disse à fotógrafa e autora Rose Osborne, em 2023.
✅Pablo era completamente abstêmio e cuidava de si. Sua mente estava sempre sóbria, clara e afiada, o que era importante para que pensasse em coisas novas e criativas.
Ela tem memórias gozadas de Picasso pulando na cama como um boneco de mola, pintando aranhas bastante realistas no ladrilho para pregar peça nas pessoas, bancando o caubói com um chapéu presenteado pelo ator Gary Cooper ou usando nariz de palhaço.
A energia para tanta fuzarca, ela acredita, vinha do chá verde, a única substância que viu Picasso consumir a rodo.
Talvez ele tenha bebido quando jovem, mas nunca, de maneira alguma, na minha presença , disse Sylvette, que tinha 19 anos quando Picasso, entrando na casa dos 70, fez mais de 100 quadros, desenhos e esculturas a tendo como modelo. Algumas sessões chegavam a durar mais de seis horas.
💥️Doze vinhos iugoslavos
O depoimento de Sylvette, no entanto, não bate muito bem com o epsódio ocorrido em 1969, quando Picasso foi convidado pelo diretor iugoslavo Veljko Bulajic a desenhar o cartaz do filme A Batalha do Neretva , uma superprodução. O elenco ✅all star incluía Orson Welles, Yul Brynner, Sylva Koscina e Franco Nero.
Na hora de acertar a conta, embora o filme tivesse um gordo orçamento, os produtores descabelaram-se: quanto custaria a brincadeira? Picasso cobrou um preço módico: pediu que lhe fosse enviada uma caixa com os melhores vinhos da extinta Iugoslávia. Foram incluídos no pacote 12 rótulos de regiões como Dalmácia, Sérvia e Macedônia.
De acordo com outra fonte bem próxima — a última esposa, Jacqueline Roque —, a temperança era uma das virtudes do pintor.
Picasso é sóbrio e frugal como uma cabra , disse ela, em entrevista à revista Vogue . Não há registro de que tenha bebido os vinhos enviados por Bulajic ou se preferiu ofertá-los aos amigos.
Segundo a revista Time , em artigo publicado em 1973, as palavras que inspiraram a canção de Paul McCartney não foram exatamente as últimas de Picasso, mas é dado como certo o fato de que as proferiu enquanto servia vinho a um convidado, o advogado Armand Antebi. Antes de despedir-se, ainda disse, por volta das 23h30: E agora preciso voltar ao trabalho .
Naquela madrugada, pintou até 3 da manhã — trabalhava duro para uma grande exposição no Palácio dos Papas, em Avignon. Na manhã seguinte, não conseguiu levantar da cama. Foi acudido por Jacqueline, que imediatamente chamou o médico, mas não houve tempo — um infarto o interrompia. Tinha 91 anos e oito décadas de vida dedicadas à arte.
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Ao pisar em Paris pela primeira vez