SAF do Atlético-MG: advogado explica processos e modelos de migração para clube-empresa

O Atlético-MG vai se transformar em clube-empresa, se valendo da lei 14193/2021, que rege as Sociedades Anônimas do Futebol. Virou o caminho adotado para salvar os clubes das dívidas bilionárias, como é o caso do Galo. Muitos pontos, entretanto, geram dúvidas. As respostas ainda estão em construção.

Há uma proposta não-vinculante ao Atlético, que ainda conversa com o potencial investidor - será comandado pelo empresário Peter Grieve - para acertar a proposta vinculante e apresentá-la ao Conselho Deliberativo. Antes de tudo isso, é preciso mudar o estatuto e criar a previsão da migração para a SAF.

É o que explica o advogado Cristiano Caús, professor especialista em direito desportivo, em entrevista ao 💥️ge. Caús fala sobre o funcionamento do Regime Centralizado de Execuções (RCE), previsto em lei, e que reúne todos os credores da associação (dívidas trabalhistas e civis) em uma espécie de condomínio, no qual 20% das receitas mensais da SAF são repassadas para abater as dívidas.

No caso do Atlético, o endividamento é astronômico. O clube ainda depende de empréstimos bancários, antecipação de receitas e vendeu 24,95% do Diamond Mall por R$ 170 milhões para abater a dívida onerosa. Grande parte é com bancos, e eles também podem entrar no RCE, desde que façam protesto judicial dos créditos a receber.

Sede do Atlético-MG — Foto: Fred Ribeiro 1 de 4 Sede do Atlético-MG — Foto: Fred Ribeiro

Sede do Atlético-MG — Foto: Fred Ribeiro

💥️Qual é o processo jurídico na transformação do clube em SAF?

- O processo de SAF não depende de um investidor, é importante deixar isso claro. Nada mais é do que a mudança de um modelo jurídico para outro. Os clubes, originalmente, mundo afora, nasceram como associações sem fins lucrativos. É uma união de pessoas lá no passado para a prática do futebol, no caso dos clubes - isso de forma tradicional. Mas essa prática se mostrou um tanto quanto inapropriada. Porque o futebol virou um negócio multimilionário, de receitas crescentes de TV, bilheteria, venda de jogadores. O modelo de associação não ficou adequado. Os clubes, por conta de gestões não tão corretas, acabam tendo de fazer operações financeiras. Essas operações atraem investidores para o clube. Mas como um investidor entra no caso do Clube Atlético Mineiro? Ele vem, emprestam dinheiro. Mas o Atlético não é instituição financeira, mas o investidor não quer só aplicar esse dinheiro e não ter rendimento. Os clubes de futebol, por questões de estatuto, não conseguem dar garantias a esses investidores, já não pode dar, desde 2015, direitos econômicos de jogadores para esses investidores.

💥️A Fifa proibiu a participação da "terceira parte" como dona de direitos econômicos de jogadores...

- Exato. O que acontecia no passado? O investidor comprava jogadores, não estava nem aí para os clubes. Iam lá e compravam 20%, 30%, 90% de um jogador, ficava parceiro do clube por meio daquele jogador. Quando veio a proibição da Fifa, então essa relação passou a ser dos contratos de mútuo (empréstimos diretos), mas o Atlético não consegue dar garantias. Se o clube não paga a comissão, o agente precisa acionar na CNRD ou na Justiça Comum. Se não pagar salário após três meses, o jogador pode pedir a quebra do contrato. O que quero dizer? O Atlético pode virar SAF e se manter dono de 100%. O modelo que aconteceu com o Cruzeiro não precisa se tornar um modelo único. Estou fazendo no meu escritório sete processos da SAF, e tem SAF que não tem investidor, é uma transformação do clube com ele mesmo.

💥️Há um passo a passo predefinido para um clube/associação civil se transformar em clube-empresa?

- O que os clubes deveriam fazer em primeiro lugar? Identificar quanto eles valem. Vai fazer a SAF? Você precisa saber quanto vale o seu capital, é o tal do "". Quanto custa essas ações. Isso depende de muita coisa. Vai entrar só os ativos esportivos, que são os direitos dos jogadores, as filiações à FMF, à CBF? Ou vai entrar ativos imóveis? Existem dois modelos de SAF: criar a sociedade anônima em paralelo, mantendo a associação, e a transformação, na qual a associação deixa de existir. O que temos visto no Brasil é o primeiro modelo. Por quê? Há benefícios para esse modelo pela Lei. Você pode deixar as dívidas todas na associação centenária. E a empresa nasce virgem, veículo de investimento novo sem dívida. Ele precisa passar 20% das suas receitas para a associação pagar dívidas no prazo de seis anos, prorrogáveis por mais quatro. Você sempre verá Cruzeiro, Botafogo, Vasco, optando por esse modelo. E o Atlético também.

Advogado Cristiano Caús atua exclusivamente no direito desportivo desde 2003 — Foto: Divulgação/CCLA Advogados 2 de 4 Advogado Cristiano Caús atua exclusivamente no direito desportivo desde 2003 — Foto: Divulgação/CCLA Advogados

Advogado Cristiano Caús atua exclusivamente no direito desportivo desde 2003 — Foto: Divulgação/CCLA Advogados

💥️Mas é preciso uma concordância do conselho deliberativo, no caso do Atlético por exemplo, para a criação da SAF. A SAF tem que estar prevista no estatuto social?

- Sim. A associação precisa ter no estatuto social a previsão da criação da SAF, da mudança de modelo. Se o clube não tem isso previsto, o primeiro passo é mudar o estatuto via assembleia geral de todos os sócios, em votação. O Santos não tinha, fez assembleia ano passado, e foi aprovado a ideia de se virar uma SAF. O Galo vai ter que fazer isso como primeiro passo. No segundo passo, o Atlético pode montar a SAF dele, e ser dona de 100% do capital acionário. Se vier o investidor com a ideia de quitar o passivo, ou grande parte dele, o que o Atlético precisa levar para a assembleia, em outro momento: recebemos essa proposta do investidor X, esse investidor vai pagar nossa dívida em X anos. A proposta dele é receber, em troca, as ações da SAF.

💥️Talvez o ponto chave de qualquer SAF seja o "acordo de acionistas", com as obrigações e deveres do "dono" da SAF. Mas há também o conselho de administração. Poderia explicar?

- O conselho de administração detém cadeiras ocupadas pelos donos das ações, de maneira proporcional. Eles irão tomar as decisões da SAF do clube, que é o futebol do Atlético. O clube pode ter basquete, vôlei, clubes de lazer, mas a SAF envolve só o futebol, e quem manda nela é o conselho de administração.

💥️A Lei da SAF fala em repassar de 20% das "receitas correntes", da SAF para a associação, no intuito de pagar as dívidas antigas. A SAF é obrigada a fazer esse repasse?

- Na nossa opinião, se o clube não aprova o RCE (Regime Centralizado de Execuções), ele não vai ter o prazo estendido e a condição bacana do repasse de 20%. Ele estará sujeito à penhora, à ordem das execuções. Em algumas decisões trabalhistas que vieram recentemente, esses 20% de repasses e o prazo de 10 anos, é só quando o clube adere ao RCE e também à SAF. Pois há clubes que aderiram ao RCE, sem ser SAF, e a Justiça Trabalhista não reconheceu esse ordenamento de pagamento de dívidas.

Obrigações da SAF com o pagamento de dívidas da associação antiga — Foto: Reprodução 3 de 4 Obrigações da SAF com o pagamento de dívidas da associação antiga — Foto: Reprodução

Obrigações da SAF com o pagamento de dívidas da associação antiga — Foto: Reprodução

💥️O que são essas "receitas correntes"?

- Temos que olhar o objeto social do clube social. O que for receita dentro da previsão do seu estatuto... Vai de bilheteria, venda de jogadores, patrocínio, direitos de TV, mensalidades de sócios torcedores. Todas essas receitas são da "atividade fim", que é a prática esportiva do Atlético, que explora licenciamento, direitos de transmissão, aluguéis de imóveis. São essas receitas que entram nas "receitas recorrentes". Se apura mês a mês para fazer o repasse mensal, já que as receitas podem oscilar a cada 30 dias. Não faz sentido esperar o ano inteiro para fazer o repasse somado aos 12 meses. Também não tem como antecipar, já que aí o trabalho seria de previsão de receitas.

💥️Qual a diferença entre regime centralizado e Recuperação Judicial?

- O RCE funciona, basicamente, como acordo judicial entre a Justiça e a SAF, seja ela trabalhista civil. Você vai na Justiça e avisa: "Tenho 20 credores, eles têm R$ 100 milhões de crédito". Você aprova um plano de pagamento com os credores. O Cruzeiro ofereceu esses dias, inclusive na CNRD. Pode pagar os créditos menores em um ano, os maiores em seis anos, em deságio de 50%. Tem clube pedindo desconto de 80% para começar as conversas. Já a RJ é algo mais amplo e complexo. Ele vai ter um regime com um administrador dessa massa, uma pessoa intervindo na gestão do clube e controlando receitas para alocar despesas correntes, passivos. É um controle pré-declaração de falência. Porque se faz isso? Justamente para ter fôlego, se recuperar, controlar o fluxo e não falir. É uma intervenção de um terceiro que, normalmente, é escolhido pelos próprios credores. Uma condição que terá mais intervenção. Na RCE, o controle é mais da SAF no pagamento das dívidas da associação, via esse repasse dos 20%.

Regras do RCE da Lei da SAF — Foto: Reprodução 4 de 4 Regras do RCE da Lei da SAF — Foto: Reprodução

Regras do RCE da Lei da SAF — Foto: Reprodução

💥️O Atlético vira SAF, os contratos dos jogadores vão para a Sociedade Anônima. O jogador precisa autorizar essa migração?

- Quando é criado a SAF via "", que é a criação de empresa em paralelo, o jogador precisa autorizar, pois haverá novo registro na CBF. Sai o CNPJ do Atlético associação, e entra do Atlético SAF. Fará a transferência do contrato de trabalho conectado à nova pessoa jurídica. Mas é um movimento que o clube tende a fazer com segurança jurídica. Não temos histórico de jogadores que tenham rejeitado. O que acontece é quando o jogador é demitido antes da criação da SAF, antes da substituição do registro na CBF, e se cria uma dívida na associação, e atletas pedem a solidariedade da SAF. Alguns juízes entendem que essa dívida é da associação e entra no RCE. Mas se houver demissão já na migração da SAF, e não é paga as verbas trabalhistas, isso vira um passivo já da SAF.

💥️Como vê a situação do Atlético perto de virar SAF?

- O Atlético faz um movimento correto, acertado, e da forma correta. Ele está tendo um pouco mais de paciência, de estudo, análise do que o mercado apresenta do ponto de vista internacional e nacional, outros modelos já feitos, e elegerá o que melhor irá aplicar ao seu cenário, ao seu torcedor, a sua grandeza. O movimento me parece correto, a velocidade não precisa ser total. Um investidor que vem para solucionar a vida de um clube não irá exigir nada menos do que o controle acionário. Mas isso não significa que é um controle do clube, isso depende do acordo de acionista. O Atlético pode colocar dentro de seus 49% das ações, por exemplo, poder de veto na contratação de jogador. Há vetos previstos na lei, para manter o nome, marca, cor, cidade. Se tiver pelo menos 10%, já consegue algo a mais, decidir os campeonatos que irá participar, por exemplo. O Atlético deve falar assim: independentemente de eu vender 51%, ou 90%, eu quero ter participação igualitária no conselho de administração. Isso pode ser acordado entre as partes, o que, a meu ver, gera mais tranquilidade, pois o sócio do Atlético poderá ver pessoas com ligação histórica e afetiva do Galo com poder de veto na SAF.

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