Procura-se uma boneca, ou a imensidão de sentimentos de uma brincadeira
Ficou esquecida em algum ponto conspícuo da calçada, sobre os ladrilhos típicos do Rio, em alguma esquina incerta entre a praia, o bar e a sorveteria, numa rua cujo nome agora me escapa. É uma boneca comum, difícil de caracterizar: tem os olhos de um azul irreal, a boca aberta num eterno entusiasmo, veste um macacão rosa com orelhas de urso, traz no peito a imagem de mais um urso rosa, em sutil sugestão de abismo. É uma boneca-clichê, dessas que envergonham os pais que se querem modernos, uma boneca que no entanto se fez a maior companheira das minhas filhas, até desaparecer naquele crepúsculo frio que custamos a esquecer.
Responde como Framboesa, quando mais atenta, mas nos dias de pressa encurtamos seu nome para chamá-la Frambs, com franca displicência. Framboesa não é qualquer boneca, dizem Tulipa e Penélope, é uma atriz versátil e afeita ao improviso, já tendo alcançado bom desempenho como filha, amiga, aluna, cliente ou desconhecida, até mesmo como boneca, em dias pouco imaginativos. Entrega-se a cada papel com o sorriso afável de sempre, por vezes incompreensível: do que ri nos momentos tensos, nas cenas aflitivas, nunca chegamos a descobrir. Era impossível não estranhar essa constância em tempos austeros, sem por isso deixar de apreciar seu otimismo.
Nos últimos meses vinha um tanto esquiva, tendente a distrações e devaneios, algumas noites passara extraviada na escola, algumas semanas na casa de uma tia, sem sinais visíveis de angústia. Como a repetição é a essência da brincadeira, como nada dá tanto prazer como brincar outra vez, tal como Benjamin sentencia, seria fácil concluir que a brincadeira das meninas era agora perder a boneca, não havendo ali uma aflição verdadeira. Pode ser, mas numa boa brincadeira é preciso crer, é preciso experimentar as sensações como se fossem absolutamente legítimas, e por isso naquele fim de tarde legitimamente entristecemos. Na escuridão refizemos o trajeto entre a praia, o bar e a sorveteria, perseguindo com agonia nossos passos antes lépidos, vagando ao fim com a pesada certeza de que jamais a encontraríamos.
Na volta para casa tratei de animá-las com uma história qualquer, uma anedota esperançosa, um vislumbre de promessa, para que aquele jamais não durasse para sempre em seus corações ainda juvenis. Contei do cronista que certa vez perdera seu caderninho e ficara triste, tão triste que escrevera no jornal um texto sobre a perda, sobre o extravio daquele pequeno volume que constituía, como ele dizia, a despeito de seus tantos livros, "sua única obra sincera e sentida". O texto tinha a forma de um classificado, com o título de "Procura-se", e descrevia com máxima minúcia aquele aparente caderno de endereços, sujo, rabiscado e velho, que continha sob a letra K trechos de um poema para sempre inacabado, e sob uma letra inconfessa o nome de uma amada nunca assumida.
Com isso se dissipou um pouco a tensão pretérita, mas de imediato elas quiseram saber se o cronista triste triste havia encontrado afinal o seu caderno, coisa que eu não soube responder. Passei a argumentar que talvez aquilo fosse indiferente, porque no lugar do caderno ele ganhara, e todos nós ganháramos, uma das crônicas mais bonitas já escritas em nossa língua, decerto mais bonita que o poema inacabado que ele trazia. Até citei a meu favor a linha final da crônica, tão explícita: "Procura-se, e talvez não se queira achar." Mas a essa altura elas já ignoravam o que eu dizia, tendo percebido a brecha que surgira, insistindo que eu escrevesse também o meu classificado, o devido "procura-se" para a nossa boneca, um apelo sentido para que a enviassem por correio a São Paulo, se ela não se sentisse claustrofóbica no envelope.
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