Por que prender agressores de mulheres não vai acabar com a violência
Natália Sousa
Revista AzMina
Essa tentativa de coibir e prevenir crimes por meio de leis com punições severas é chamada de "punitivismo". Na lógica punitivista, a prisão e as penas são usadas como exemplo para o resto da sociedade, num plano de amedrontar e mostrar que tal conduta criminosa está sendo duramente coibida.
Quanto mais intenso o castigo, mais forte a ideia de que aquele crime não irá se repetir. Com essa promessa o punitivismo encontra apoio entre a população, a mídia e a classe política, ao mesmo tempo em que é usado pelo estado como instrumento de combate à violência. Mas por que isso não funciona?
Punição não é eficaz
O termo punitivismo é atribuído ao criminologista Anthony Bottoms que, na década de 1990, escreveu um artigo sobre o comportamento de políticos que defendiam determinadas penas considerando a popularidade dessas punições entre a população, e não sua eficácia. Ele observou que as medidas que se mostravam mais efetivas —para transformar o contexto social em que os crimes aconteciam— eram trocadas por aquelas que tinham mais apelo entre os eleitores.
Uma contracorrente a esse pensamento é o abolicionismo penal. Os abolicionistas se posicionam contra as formas de castigo usadas hoje pela Justiça e defendem que elas sejam substituídas por formas de conciliação e reparação. "A punição por si só não é pedagógica, não consegue fazer a sociedade entender que determinadas condutas problemáticas não podem ser reproduzidas na sociedade", defende Juliana Borges, autora do livro "Encarceramento em Massa", da coleção Feminismos Plurais.
Mas o punitivismo já deixou suas marcas na formação e desenvolvimento do direito penal e do sistema carcerário brasileiro, e afetou profundamente as populações minorizadas, como as mulheres. A população de mulheres presas cresceu exponencialmente e o trabalho com o cuidado das pessoas encarceradas também. Além disso, quando a única resposta a violência de gênero é a punição do agressor, as vítimas são esquecidas.
Punitivismo encarcera mulheres pretas e pobres
Pensar o punitivismo exige uma reflexão sobre quem faz essa justiça e a serviço de quem ela é feita. Um levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 2018, mostra que o perfil majoritário dos juízes brasileiros é branco, católico, casado e com filhos. Em contrapartida, 68% das mulheres encarceradas são negras, 57% são solteiras, 50% têm apenas o ensino fundamental e 50% têm entre 18 e 29 anos —os dados são do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania.
O Judiciário brasileiro prende, julga e condena as mulheres sem nem ao menos considerar outras formas de responsabilização, indica a pesquisa do ITTC. A maior parte delas cumpre pena em regime fechado, mesmo sem possuir antecedentes criminais, e tem dificuldade de acesso a empregos formais. A maioria estava envolvida com atividades relacionadas ao tráfico —sem oferecer grandes riscos à sociedade.
Entre 2000 e 2022, a população carcerária feminina cresceu 512% no Brasil, conforme o Departamento Penitenciário Nacional (Depen). Fora as punições estatais, elas ainda são castigadas por estarem longe dos filhos e familiares, que também sofrem com suas ausências. Em caso de famílias monoparentais, em que elas exercem exclusivamente o papel de cuidado, crianças e adolescentes ficam expostos ainda mais à vulnerabilidade física e financeira. As mães que conseguem o direito à prisão domiciliar enfrentam uma série de restrições que prejudicam a maternidade, como mostramos em reportagem d'AzMina de maio de 2023.
A perspectiva da estudiosa no tema Juliana Borges é de que o Estado usa a desculpa do combate à violência para exercer força e poder contra a população mais vulnerável. "Então me parece contraditório demandar desse Estado, que tem a violência como núcleo, que ele nos proteja" defende.
A primeira Lei Criminal no Brasil entrou em vigor em 1830, quando a escravidão era uma prática no Brasil. A estrutura, desde então, favorece homens brancos e castiga todo o resto da população, que difere dessa classe e raça dominantes - ou seja, homens pretos, pessoas indígenas, imigrantes, trans, mulheres e população pobre.
No caso das mulheres, elas ainda são punidas com mais força pelo machismo judicial. Primeiro porque foram contra a lei, segundo porque são vistas como aquelas que se afastaram do papel de mãe e de donas de casa. As penas, nesse caso, servem também para punir e controlar o que é visto como uma "transgressão" contra o sistema patriarcal.
Em 2023, o CNJ reconheceu como mito a neutralidade no sistema judiciário, segundo o próprio órgão, o direito age sob a influência do patriarcado e do racismo. No mesmo ano foi lançado um protocolo para orientar magistrados a conduzirem julgamentos com perspectiva de raça e gênero.
Quem cuida das pessoas encarceradas são as mulheres
Mesmo quando vivem em liberdade, é empurrado a elas o cuidado de seus familiares e companheiros presos. São as mulheres que fazem visitas e preparam o chamado "jumbo", itens de alimento e higiene pessoal levados aos encarcerados —trabalho que deveria ser responsabilidade do Estado, mas é terceirizado a elas.
No Relatório da Defensoria Pública de São Paulo, das inspeções entre 2014-2019, 69% das pessoas presas de ambos os gêneros relataram não receber sabonete. As mulheres são usadas como uma peça nessa engrenagem punitiva: o Estado prende, e elas são levadas a fazer o trabalho não remunerado de mantê-los vivos lá dentro.
Muitas ainda precisam se dividir entre a administração da casa e o sustento da família, além de serem cobradas pela criação de netos e filhos. Isso quando não são elas que precisam ir atrás de provar a inocência dos seus, acusados injustamente por crimes que não cometeram. Também abordamos isso em reportagem de 2023.
Em casos de feminicídio, quando a mãe é morta pelo companheiro, cabe muitas vezes a avó acolher esses órfãos. São crianças traumatizadas, que precisam de tratamento médico, mas o Estado se concentra apenas na punição. E a função de reparar o dano causado, que deveria ser um aspecto prioritário na ideia de Justiça, fica com essas pessoas já idosas, geralmente vulneráveis, por suas condições financeiras, físicas e emocionais.
Vítimas de violência deixam de ser prioridade
Uma pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais indicou que as mulheres mais atingidas pela violência de parceiros são jovens, negras e pobres. Outra pesquisa, realizada pelo Instituto Patrícia Galvão em capitais nordestinas, aponta que mulheres que sofrem violência doméstica recebem menores salários e permanecem por menos tempo em seus empregos. Por causa das agressões, elas chegam a faltar em média 18 dias no trabalho durante um ano, o que é punido com o corte do vínculo empregatício ou diminuição da renda. Enquanto a duração média do emprego para as mulheres que não sofrem violência é de 74,82 meses, a duração média no emprego para as que sofrem violência é de 58,59 meses, uma redução de 22%.
Mas o encarceramento do agressor é visto pela sociedade e pelo Estado como justiça, e o contexto social, que agravou a violência, permanece igual, deixando a vítima desamparada e vulnerável a novas violações. "Não deveríamos olhar para os casos de forma isolada, mas sim, enxergar e atuar a partir também do contexto social também", avalia a mestra em direito e pesquisadora de Justiça Restaurativa Débora Eisele Barberis.
Quando se fala em violência de gênero, é preciso lembrar que cada mulher vai ter necessidades e perspectivas muito particulares do que é sentir que a justiça foi feita, após a violência que ela sofreu. Ser escutada e considerada são partes fundamentais para ela se sentir capaz de ter uma vida minimamente satisfatória.
Por vergonha e medo, Victória, a mulher de quem contamos a história no início desta reportagem, deixou de trabalhar e sair com os amigos. Depois de frequentar algumas sessões de terapia, oferecidas pelo Estado, ela teve alta. Ajudou, mas não conseguiu se abrir como gostaria. "Era muito recente."
Uma advogada que atende vítimas de violência doméstica na ONG em Boas Mãos se prontificou a custear tratamentos estéticos e ofereceu amparo psicológico para Victória. Foi diferente de tudo que ela tinha vivido até aquele momento. As perguntas que sempre a faziam antes eram sobre a prisão do agressor. "Lá eles queriam saber como eu estava."
O reflexo disso é que, apesar de ter aumentado o número de mulheres que compareceram à delegacia em 2023, uma pesquisa do Fórum de Segurança Pública que ouviu vítimas de violência doméstica mostrou que boa parte delas optou por outros recursos: 38% resolveram sozinhas e 21,3% não acreditavam que a polícia pudesse oferecer solução.
A decisão por não procurar as vias judiciais, muitas vezes esconde o medo do encarceramento de seus agressores, com quem as vítimas mantêm relações de afeto e dependência financeira. Algumas são convencidas pelos familiares e por religião a recuarem, porque isso significaria mandar o parceiro para a cadeia, decisão que "desmancharia a família" e faria os "filhos crescerem sem a presença do pai".
Há também o medo da revitimização institucional, que é quando quem deveria zelar pela justiça provoca mais violência. Um dos exemplos disso é quando, na delegacia, a vítima é obrigada a recontar os detalhes da violência sofrida para diferentes profissionais. Pelo medo de não ser compreendida e julgada, muitos acabam permanecendo no ciclo violento, em silêncio.
Se não punir, faz o quê?
O relatório do Centro de Referência Estadual da Igualdade de Goiás mostra que propor espaços de reflexão e responsabilização para que agressores repensem seus comportamentos pode funcionar. A análise foi feita com 69 homens que participaram de Grupos Reflexivos sobre Gênero e Violência Doméstica.
Após seis meses frequentando o programa, o índice de reincidência nas agressões foi de 8%. A média nacional, sem a participação em ações semelhantes, gira em torno de 20%, e, em alguns Estados, chega a 80%, conforme dados da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
A participação obrigatória de agressores em grupos assim é uma medida prevista na Lei Maria da Penha (LMP). O texto tem propostas de prevenção à violência de gênero, como promoção de campanhas sobre direitos humanos, equidade de gênero, violência doméstica, além de transformar currículos escolares para debater os temas.
Embora seja uma medida comprovadamente eficaz, a maior parte dos grupos reflexivos que existem no Brasil não têm profissionais habilitados e tendem a durar pouco, conforme cita pesquisa realizada em parceria com o CNJ. Geralmente, as turmas são formadas por alguém interessado em realizar o trabalho, mas acabam quando essa pessoa é transferida de área, ou ao fim de uma gestão municipal.
A advogada especialista em direito das mulheres Ana Carolina Oliveira da Silva sente essa dificuldade. Há cinco anos ela tenta abrir um grupo para homens em Santos (SP), mas não consegue apoio do Poder Judiciário local. "Não tem espaço para essa conversa." Ana Carolina avalia que insistir no punitivismo como única resposta é reflexo de uma justiça que não pensa nas mulheres.
Justiça para não aprofundar desigualdades
Para a filósofa bell hooks, transformar a sociedade para que ela seja melhor para as mulheres passa por disputar os mecanismos culturais. E isso é possível por meio da educação, da promoção de debates, de uma conscientização que entenda a diversidade como uma riqueza. Ela fala ainda em desconstruir a simbologia de poder - de homem acima das mulheres -, garantindo autonomia econômica para que elas possam romper com o ciclo de violência. Mas como esperar esse movimento de uma justiça fundada no poder e no olhar patriarcal?
Juliana Borges considera que a ideia de Justiça Restaurativa traz um caminho. "Ela vai falar de um novo entendimento sobre responsabilização". No sistema atual o indivíduo sofre punição. Na estrutura restaurativa a responsabilização é definida como "desempenhar ações para reparar o dano e compensar a vítima". E isso passa por restauração ou construção do vínculo social, reparação à vítima e reabilitação do ofensor.
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