Cintura baixa: uma tendência de moda pode ameaçar corpos diversos?

Calça de cintura baixa resgata discurso de exaltação à magreza  - Reprodução/Divulgação

A calça de cintura baixa, idealizada pelo estilista Alexander McQueen em 1995, acompanhou um importante processo de ruptura no padrão estético que permaneceu inalterável por mais de 200 anos, como explica Denise Bernuzzi de Sant'Anna, professora de história da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e autora do livro "Gordos, Magros e Obesos —A História do Peso no Brasil" (ed. Estação Liberdade).

"[O modelo] foi imaginado para aquilo que, nos anos 1970, se chamava de 'mulher felina', em contraposição à 'mulher flor', que é a mulher com corpo de violão, que o homem pega pela cintura como uma florzinha, põe no vaso, planta e cultiva", afirma a especialista. Para ela, essa mulher que dominava o imaginário romântico masculino desde o século 19 vai sofrer a concorrência da mulher felina, mais longilínea, que tem sexy appeal. "Não tem só glamour, ela é sexy, ela é mais jovem, ela é Lolita."

Para Denise, a volta da estética anos 2000 resgata também esse ideal de corpo, porém não a versão "Lolita" de Vladimir Nabokov, mas a versão Lara Croft, personagem de videogame interpretada no cinema pela atriz Angelina Jolie em 2001. "Quando a Lara Croft da Jolie aparece, ela tem uma coisa que as mulheres dos anos 1960 não tinham em hipótese alguma, que é representar a mulher que vai à luta, a mulher que trabalha, que vai para guerra", diz a especialista.

A atriz norte-americana Angelina Jolie no filme "Lara Croft: Tomb Raider", inspirado no videogame de mesmo nome (esquerda) e na première do filme em 2001 (direita) - Reprodução/Divulgação - Reprodução/Divulgação

Embora com contrapontos, ambos os ideais de corpos estudados pela pesquisadora nos anos 2000 dividem o manequim 38 —medida que, geralmente, é requisitada para modelos de passarelas. Sendo o corpo magro ainda o ideal de beleza, o que muda com a volta da tendência agora?

Os discursos para corpos livres

"O corpo magro sempre foi o corpo que as pessoas queriam atingir. O que acontece hoje é que temos acesso a novos discursos", afirma a pesquisadora Bruna Salles, professora de moda do Senac Lapa Faustolo e doutoranda em História pela PUC-SP, onde estuda a história do corpo gordo no Brasil.

Esses novos discursos são fruto do ativismo pela valorização do corpo, como o movimento "body positive" da década de 1960 e o plus size na década de 1970, ambos originados nos Estados Unidos e que ganharam maior visibilidade no Brasil pelas redes sociais. O plus size, por exemplo, deixou de ser apenas um movimento para virar um nicho de mercado.

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Essa reação do mercado caminha lado a lado com os movimentos de valorização do corpo. Em outras palavras, estar bem consigo mesma é um valor de mercado, como explica a professora Denise: "A ideia da saúde estar presente na aparência física das mulheres vale mais hoje do que no passado. E a grande maioria das roupas e dos acessórios tem que expressar isso: o fato de você estar empoderada".

Cintura baixa leva a "adoecimento" de consumidores

Para o mundo da moda, criar padrões de beleza inalcançáveis, como o da cintura baixa, é uma forma de alimentar o próprio setor. "Você adoece os consumidores porque, quando você quer consumir a moda, quer se encaixar no que ela oferece", afirma Lola Ciccari, pesquisadora e comunicadora de moda responsável e apresentadora do podcast "Por Baixo dos Panos", em que revela todas as problemáticas por trás da indústria fashion.

Há exemplos concretos. A modelo e influenciadora plus size Letticia Munniz nos contou que a luta para tentar se encaixar nos padrões de beleza a fez desenvolver transtornos alimentares desde muito cedo. Dos 10 anos à idade adulta, ela lutou contra a anorexia e a bulimia e chegou a tomar diferentes tipos de remédios tarja preta para emagrecer, sempre oscilando entre episódios de compulsão alimentar. "Teve um dia em que eu comi 5kg de bombom de uma vez só e passei muito mal. É sempre essa alternância entre não comer e comer desesperadamente".

Foi no movimento "body positive" que Letticia encontrou sua libertação. E hoje, ao se autovalorizar, a influenciadora afirma que se cuida muito mais do que antes, que come melhor e se exercita, pois valorizar o corpo que se tem não significa deixar os cuidados de lado, mas sim, se olhar com amor e se acolher.

"Sou grande. Tenho bunda, peito e braço. Esse é o meu corpo saudável. Quando decidi me libertar, foi nesse momento que veio o 'body positive', o amor próprio que, ao contrário do que muita gente acha, não significa falar 'dane-se', pelo contrário. É um momento em que você não vive mais para atender expectativas alheias", afirma a modelo.

Segundo Lola, o mundo dos desfiles e o dos editoriais de moda são universos paralelos: nas passarelas, o padrão sempre foi e continua sendo de mulheres altas e magras. Já nos editoriais, grandes marcas, como Calvin Klein, têm apostado na diversidade estética, colocando diferentes biotipos em seus outdoors e publicações.

Mas todo movimento tem uma contracorrente. De um lado, o de valorização do próprio corpo e, do outro, a ascensão da moda "Y2k" e a barriga "chapada" como acessório do outfit. Nas palavras de Lola: "Esse contramovimento traz a exaltação dessa magreza que a gente vê que não parece natural, parece uma magreza construída. E isso tem um impacto muito grande na forma como a sociedade vai se ver agora".

Letticia vai além e defende que o retorno da moda 2000 representa um novo processo de exclusão. É como se fosse um hype: em dado momento, estava em alta ter corpos diversos na moda. "Agora não é mais legal. E não é sobre ser legal. É sobre a gente ter o direito de fazer parte disso. É sobre eu ter o direito de poder me vestir como quiser", diz a modelo.

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