A filósofa Marilena Chauí e o uber evangélico
A reflexão da filósofa Marilena Chauí sobre a religião evangélica foi feita nos seguintes termos: "Fico muito agoniada: tomo o Uber e na hora que eu desço e digo muito obrigada, boa noite, o motorista diz: fica com Deus. Eu sei que ele é pentecostal, que é fundamentalista. Eu fico desesperada com essa ideia".
O evento era o 5º Encontro de Pós-Graduação em Filosofia da USP, ocorrido no último dia 13 de agosto e a palestra está disponível no site da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP). Na ocasião, a filósofa falava sobre seu livro "A Patrística: Uma Introdução ao Nascimento da Filosofia Cristã", publicado sob o selo da Companhia das Letras.
A análise feita por Chauí sobre a versatilidade do cristianismo, na antiguidade e na atualidade, para se espalhar por todas as camadas sociais está correta. No período da Patrística, do primeiro ao oitavo séculos depois de Cristo, o cristianismo alcançou do escravo ao imperador. Hoje o cristianismo, em sua versão evangélica, se espalha dos trabalhadores de aplicativos aos CEOs da Faria Lima.
De modo jocoso, na palestra, Marilena explica a instituição da Santa Ceia dizendo que o ato de dar graças erguendo o pão e o cálice era um costume dos reis por ocasião da colheita das uvas e que Jesus teria apenas copiado esse gesto. A inovação de Jesus, segundo ela, estaria nas palavras: "Isto é meu corpo, isto é o meu sangue. Comei e bebei dele todos vós". Em seguida, sob risos da plateia, ela afirma: "Mas isso nem temos certeza se realmente ele disse".
Na leitura dos relatos da instituição da Santa Ceia percebe-se que "isto é meu corpo, isto é meu sangue..." estão registrados como palavras de Jesus, já os gestos de erguer o pão e o cálice não estão registrados nos Evangelhos nem no texto mais antigo sobre a Ceia contido na primeira epístola de Paulo aos Coríntios. A filósofa projetou sobre o texto sua memória do gesto que os sacerdotes católicos fazem ao celebrar a eucaristia.
A limitação da palestra e do livro da professora não reside na aversão dela pela religião cristã, seja na versão católica ou evangélica, que fica clara quando diz que fica agoniada em pensar que o motorista do Uber é pentecostal. Seu problema está no desprezo às regras de produção do próprio campo científico, a começar da mais básica: atualização bibliográfica.
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Ao conferir a bibliografia registrada ao final do livro encontrei 12 livros publicados ou reeditados no século 21, o grosso são obras da metade do século 20 que reproduzem clichês da exegese do século 19. Na palestra, Marilena afirma que decidiu excluir os autores cristãos que escrevem sobre patrística, ou seja, 99% da produção acadêmica sobre o período.
O pesquisador religioso pode ser enriquecido por análises da religião feitas por acadêmicos ateus, e o contrário também é verdadeiro. O que empobrece a pesquisa em ciência não é a crença ou a descrença dos pesquisadores, mas o preconceito e a desatualização destes.
Ao ver os aplausos da plateia no evento da FFLCH, lembrei-me de um pastor que recomendou, também sob aplausos, que evangélicos não mandem seus filhos para a universidade sob o risco de perderem a fé. Tenho carinho pela FFLCH, afinal, estudei lá da graduação ao doutorado em sociologia, mas temo que nestes tempos de uberização estejamos perdendo, na igreja e na universidade, justamente o que a patrística uniu de modo magistral: a inteligência e a fé.
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