Enfio a última bala na boca e meus amigos dizem: olha elaaaa...
Lucas acabou de chegar de Londres e trouxe gummies de cannabis: "Você não toma as gotinhas pra fibromialgia? É a mesma coisa, uma ‘brisinha’ boa". Ele abre a latinha e seus amigos se lançam com ímpeto. Meia hora depois estão todos agindo normalmente: conversam, bebem cerveja, digitam em seus celulares. Enfio a última bala na boca, em nome da minha lombalgia, que piora muito no inverno.
Lucas e Carol se olham como se dissessem "olha elaaaa!". Pergunto o que foi. Eles explicam que todas as balas menores, de um a cinco miligramas, já tinham acabado. Demorei e só sobrou a de dez miligramas, que é essa que acabei de enfiar inteira na boca.
Eu me recuso a ter uma síndrome do pânico gerada por uma frase. Não serão o olhar deles, a entonação deles, a voz deles que irão me gerar pânico. Se for para sentir qualquer coisa, a coisa vai ter que me procurar muito e lutar horrores para me encontrar. Eu não vou correr atrás da coisa apenas porque sou cismada e estou apavorada. A bala vai ter que tocar a campainha, entrar, perguntar para todo mundo quem eu sou e onde estou. E depois vai ter que me seduzir, e só então, seduzida, eu vou ceder meu corpo pra coisa toda da bala, e só então... Enfim, eu já estava com milhões de pensamentos por segundo, era tarde demais.
Abro o Google e digito: "Quantos cigarros podemos fazer com dez gramas de maconha?". A resposta: dez cigarros. Uma bala equivalia a fumar dez cigarros de maconha de uma só vez? Eu, que tenho rinite e sou vasovagal, nunca tinha suportado fumar nem 1/3 de um cigarro de maconha. Levanto, vou até a Carol e digo: "Amiga, eu tô morrendo, me tira daqui agora".
Digito no Google: "bala de maconha morreu de overdose"; "bala de maconha como saber quando foi demais"; "gummies de cannabis riscos à saúde"; "bala de maconha quando é a hora de ir para o hospital"; "meu cachorro comeu toda minha maconha e agora?".
Carol vai procurar a bolsa. Mando mensagem para a minha psiquiatra: "Chupei uma bala de maconha com muita maconha o que vai acontecer?". Começo a procurar por Lucas. Lucas acabou de ir embora. Mando áudios para o Lucas, mensagens para o Lucas, ligo para o Lucas, ligo para o namorado do Lucas. Lucas atende. "São 10 miligramas ou 10 gramas?" Ele procura a embalagem para me mandar uma foto, para eu parar de ser besta. Ele perdeu a caixinha.
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Fico meia hora procurando a saída em um apartamento de 70 m2. Dentro do elevador, digo que estou me abraçando porque me adoro e estou com frio, mas é para tentar disfarçar o tanto que meu corpo saltita e sacode. Estou acompanhada de um editor importante do mercado literário. Ele e sua mulher conversam comigo normalmente. Estou congelada em uma cara maníaca e Carol começa a ter ataques de riso.
Não consigo mais esconder e fico de cócoras com a cabeça enfiada entre as mãos. "O que ela tem, meu Deus?" Carol ri tanto que se joga em uma poltrona na recepção do prédio. Faço um esforço gigantesco para me comunicar, porque meu maxilar enrijeceu de tanta tensão muscular: "Desculpa, mas tô tendo uma bad vibes!" Carol berra, com medo de fazer xixi nas calças de tanto rir: "É bad trip, amiga, e é impossível você ter isso com uma balinha."
Ao ouvir minha voz completamente diferente, forte, grossa e rouca, a companheira do editor não está achando graça e arregala os olhos: "Não deixa a Tati entrar assim no Uber, pra mim está muito claro que ela recebeu uma entidade!". Começo a acreditar que estou mesmo recebendo uma entidade e fico ainda mais desesperada. "O que vamos fazer com ela? Hospital? Umbanda?"
Recebo a resposta da psiquiatra: "Enjoy!".
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