O simpático Kafka detestava gente

Não é preciso ler Kafka para saber o que é "kafkiano". De tão repisada, a abertura de "A Metamorfose" é arquiconhecida: "Quando certa manhã Gregor Sansa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso".

O despertar intranquilo, para se ver no olho do redemoinho de um pesadelo do qual é impossível acordar, porque agora é real, surge também na primeira frase de "O Processo": "Alguém certamente havia caluniado Josef K. pois uma manhã foi detido sem ter feito mal algum".

Os poucos escritos que Kafka publicou em vida passaram em branco, mas a posteridade fez dele o escritor essencial do sombrio tempo que vivemos. É kafkiano o mundo burocrático que, com demandas sem sentido, deprime o indivíduo e então o abate como a gado num matadouro.

Há quem busque na vida de Kafka a chave que abriria o entendimento de sua obra. É o caso da colossal trilogia biográfica de Reiner Stach, o pesquisador alemão que dedicou dez anos aos atos e fatos do autor de "O Castelo".

A Todavia publicou o segundo e, agora, o terceiro tomo de Stach, "Os Anos Decisivos" e "Os Anos de Discernimento". Ele pediu à editora que deixasse para o ano que vem o lançamento do primeiro volume.

Foi um pedido kafkiano. O leitor cai de paraquedas no meio da vida do artista e o segue até a morte, mas o desfecho só virá no livro inicial, que trata da sua infância. Os três livros somam duas mil páginas –várias vezes mais que as obras completas de Kafka.

Stach parte do que o mago de Praga escreveu para vê-lo em família e no trabalho, com namoradas e amigos, na literatura e na Primeira Guerra Mundial. Embora exaustiva, a trilogia não exaure os enigmas da esfinge, mesmo os banais.

Quatro pessoas, por exemplo, disseram que Kafka tinha olhos escuros; outras quatro, cinza; três, marrom; seu passaporte atesta serem azul-acinzentados. Não dá para saber nem um fato básico, se bem que sem importância: o âmago de um criador não está na cor dos olhos e tampouco ilumina o que fez.

A biografia é kafkiana noutros sentidos. Stach admite que não conta "a verdadeira vida de Kafka", e sim lança "um olhar efêmero em sua direção". Avisa que irá se ater aos fatos, e em seguida especula. Decreta que é "melhor abrir mão da psicologia do que se valer da má psicologia", mas se dedica a isso. As contradições se sobrepõem.

A figura que surge é baça. Kafka era alto (1m92), magro (50 kg) e musculoso (nadava, fazia ginástica, remava). Vegetariano, mastigava cada bocado cem vezes. Era um funcionário modelar, querido por colegas e chefes. Foi um homem qualquer e, ao mesmo tempo, um esquisitão.

Vivia para a literatura, embora não terminasse seus livros e ficasse em pânico ao publicá-los. Pouco falava com a mãe, e com o pai só para brigar, mas viveu com eles até os 30 anos, apesar de ganhar bem. Odiava ficar sozinho ou com gente, e ainda por cima era simpático

Teve namoradas adoráveis: Felice, Julie, Milena e Dora. Seduziu-as, noivou e, na hora de casar, abandonou-as com um misto de remorso e alívio. Via o coito "como um castigo pela felicidade de estar junto". Normal ou anormal? Disse a seu pai que "ser anormal não é a pior coisa, pois normal, por exemplo, é a guerra mundial". Touché!

A Primeira Guerra Mundial rende os melhores capítulos da biografia. A miséria é geral, as deserções se sucedem, protestos gigantescos desfilam na frente da sua janela e, em 1918, o império austro-húngaro desmorona com estrépito. Kafka não escreveu nada: estava com tuberculose, na época letal pegou a gripe espanhola, ficou pele e osso. E sobreviveu.

Receba no seu email uma seleção de colunas e blogs da Folha

Morreu seis anos depois, em 1924. Sem conseguir respirar e com dores atrozes, suplicou que lhe injetassem ópio. Tinha 40 anos. Seus livros extraordinários são o que resta, pois Stach demonstra que a alma da sua vida era vazia. O segredo que sua obra diz está em "Uma Mensagem Imperial".

No conto, de um parágrafo, o imperador moribundo recita uma mensagem e manda que seja repetida a um súdito, o mensageiro atravessa a multidão que atravanca corredores e escadas para ver o imperador nas últimas, mas o palácio é imenso, está cercado por pátios, jardins e muros infindáveis, nem em mil anos o mensageiro conseguirá sair da cidade no centro do império, toda ela atulhada de gente e moradas, não chegará nunca à estrada que vai à província onde você, o súdito a quem a mensagem se destina, "está sentado junto à janela e sonha com ela quando a noite chega".

O que você está lendo é [O simpático Kafka detestava gente].Se você quiser saber mais detalhes, leia outros artigos deste site.

Wonderful comments

    Login You can publish only after logging in...