Mortes: Nomeada Princesa, reinava livre pelas ruas de Higienópolis

Princesa foi atropelada na esquina da avenida Angélica com a Higienópolis, no dia 8 de agosto, por volta das 16h. Francisca Pereira da Silva tinha 71 anos e era alagoana. Passou as últimas décadas caminhando pelas ruas do bairro, carregada de sacolas e um pouco mais curva a cada ano.

Princesa se autointitulava Princesa e isso combinava com ela, porque apesar de não ter casa nem castelo tinha a altivez própria do título. Aceitava doações de forma criteriosa, segundo suas vontades e princípios.

Por dez anos almoçou na casa do meu avô João, a quem considerava um amigo. E ele gostava muito dela. Seu café com leite tinha que ser pelando, açucarado, e toda sexta-feira recebia duas notas de R$ 10. Quando saiu a nota de R$ 20, ela não queria aceitar, queria as duas de dez. Meu avô ofereceu uma onça de R$ 50, mas ela queria as de dez. Não gostava de mudanças, era andarilha de caminhos repetidos, que lavava seu rosto obsessivamente no bebedouro do Parque Buenos Aires e descansava nos mesmos lugares.

Quando ofereciam ajuda, aceitava se lhe convinha ou respondia: "Eu não te pedi". Era cordial quando diziam "Bom dia Princesa!", mas uma vez perdeu a cabeça quando a chamaram de coitada. "Coitada nada, sou a princesa de Higienópolis e do Pacaembu."

Uns dizem que enlouqueceu de amor, outros porque a antiga patroa se matou. Em 2016, num raro momento de confidência, revelou ao atendente do barzinho onde tomava o café seu nome e cidade. Foi coincidência grande, ele também era de Palmeira dos Índios e publicou um vídeo no Facebook. Em minutos o telefone da família em Alagoas começou a tocar.

Depois de décadas sem notícias, vieram buscá-la em São Paulo, mas ela não quis voltar. Preocupados, internaram-na numa instituição psiquiátrica onde parou de ter crises, mas meses depois voltou para a rua. Depois meu avô alugou um quarto numa pensão, mas ela novamente não quis ficar.

Um dia tocou a campainha aflita e disse que estava com medo. Precisava que o doutor guardasse suas coisas e, se algo acontecesse, tudo ficaria para ele. Meu avô aceitou abrigar sua coleção de sacolas e dias depois ela voltou. Perguntamos o que tinha dentro, mas ele disse que não abriu. Nunca soubemos quais perigos enfrentou, mas posso calcular que são muitos os perigos na vida de pessoas em situação de rua.

Naquele dia 8, eu voltava de uma reunião quando vi um corpo, coberto por uma manta de alumínio, estendido no asfalto. Tinha sido atropelado. Dez minutos depois, já corria a notícia pelas portarias e bombas de gasolina do bairro que a vítima era Princesa.

Princesa morreu na esquina mais importante e movimentada do bairro onde reinou por décadas. Suas sacolas e seu corpo esperaram quase cinco horas para serem recolhidos, e o bairro todo se comoveu com a demora.

Tive receio de que fosse enterrada como indigente, mas consegui contato com Jan, seu filho, e soube que ele havia organizado uma vaquinha para o traslado do corpo. "Botei um ponto de honra dentro de mim de que minha mãe seria enterrada em casa."

Foi em Palmeira dos Índios que conheceu o pai de Jan. Dizem que ele a abandonou grávida e, assim que Jan nasceu, Francisca veio para São Paulo. Uma vez por ano retornava para visitar o filho e numa dessas chegou grávida e com alucinações. Depois que Darlan nasceu, disse que iria a São Paulo reclamar uns direitos trabalhistas e voltava. Ficou 31 anos sem aparecer.

Jan não sabe por que ela foi parar na rua, só sabe que Princesa tinha paixão por São Paulo. Agradece a corrente de bem que cuidou dela nas últimas décadas, Dr. João, Maria Lygia, Conceição e tantos outros. Princesa foi velada no sábado (10) e enterrada no domingo. Por aqui não haverá cortejo pelas ruas que obsessivamente trilhou, mas imagino que, se houvesse, todos parariam para saudá-la.

Peço desculpas pelos possíveis erros e omissões sobre a vida de Francisca neste breve obituário. Desejo que ela descanse em paz.

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