Nicinha e Jurema me ajudaram na difícil tarefa de escrever sobre o amor

É difícil escrever sobre o amor. Tão difícil quanto sair deste tópico frasal. Como conduzir as palavras pelos poucos cômodos nos quais ele, o amor, esgueira-se, sem perder o fio condutor da conversa de portão que aqui faz morada é, sem dúvidas, um abrir e fechar de portas constante.

No movimento que muda o cenário da sala para o quarto, a intimidade dá ao amor algum senso de direção. No sofá vendo novela ou na cama vivendo as próprias, continua difícil escrever sobre o amor quando a vida —e suas tantas complexidades autoproclamadas urgentes— parece reservar um quartinho apertado para tal sentimento.

Há tanto que se fazer para sobreviver que falar de amor soa como piada imprópria. Ninguém ri. Pelo menos não até que este sentimento demasiado humano encontre uma brecha para que sua graça se misture ao cotidiano. Um pouco dele enquanto se passa o café; outro tanto quando o pão é cortado e lambuzado de margarina; no pentear dos cabelos ele se emaranha; ao observar as mãos ele conta o que revelam as linhas das palmas; na preocupação seguida de silêncio é ele, o amor, quem faz prevalecer a união quando esta não se mostra prisão.

É difícil escrever sobre o amor, só não tão difícil depois de tê-lo visto na mais singela prova de sua existência: a vida simples. Nos amanheceres de Nicinha e Jurema, o fundamento se arruma feito proceder, a essência se materializa em pele, cor, textura e toque, e o substantivo finalmente se traduz em verbo. Do amor ao amar.

A história das duas mulheres negras, moradoras da Favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, começa a ser contada em movimento circular. O tempo, para muitos povos da África ancestral, nunca foi linha reta, mas círculo. Ano-Novo, aniversário, há fim para que haja recomeço. Complemento e continuidade. No samba se conheceram e na amizade se descobriram levadas a uma vida a duas.

Nicinha e Jurema, cujas complexidades da existência negra e pobre num país ainda racista e preconceituoso não precisaram se exclamar urgentes nem divergentes dos moldes de relacionamento hoje debatidos, deixaram que o amar —o amor em ação— corresse pelos poucos cômodos das muitas casas coladas, fosse como passos desordenados dos netos e netas ou cheiro da comida sendo preparada nas panelas. Entre rupturas e reconciliações, mundos se criaram, vidas se multiplicaram a partir de duas mulheres negras e suas estratégias de sobrevivência que davam o devido espaço para amar.

Da umbanda à consulta médica, corpo e espírito buscavam o equilíbrio necessário para se desdobrar ao longo do calendário sem perder nem um dia sequer. Tudo precisava ser vivido e vivido por Nicinha com Jurema.

É difícil escrever sobre o amor quando as janelas da mente se fecham para as tantas paisagens pintadas no instante em que substantivo se faz verbo e a cria passa a criar. Jurema sonhava com a casa erguida em terreno rodeado por natureza e silêncio. Cada parede a ser edificada era também pedaço do sonial desejo indo do imaterial da fabulação ao concreto da realização. Junto de Nicinha, ela já conseguia ver além da inexistente ventana que, um dia, abrir-lhe-ia o enxergar mundo afora. Na imagem, as duas juntas: na Rocinha, no terreiro, na praia, no amar —em todo lugar.

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