A infância que almejamos para os filhos

Há os que tiveram experiências pessoais tão dramáticas na infância que nem sonham em assumir a responsabilidade por uma criança. Outros só descobrem no último instante que o fardo da parentalidade pode ser demais. Como uma paciente que teve uma gravidez idílica, mas que ao pegar seu recém-nascido nos braços pela primeira vez teve uma crise de pânico. Tendo sofrido maus tratos a ponto dos pais perderem sua guarda, não foi capaz de aguentar a angústia de ter alguém tão desamparado sob seus cuidados. Entregou-o em adoção.

Do outro lado, alguns foram tão mimados, que se ressentem de abrir mão da posição de cuidado para se tornarem cuidadores.

De toda forma, a ideia de compensar na outra geração aquilo que nos faltou é uma das razões pelas quais Freud fala do caráter eminentemente narcisista da empreitada parental. Serei uma mãe/pai melhor do que os que tive e minha prole será bem-sucedida e feliz. A promessa é boa, mas embute a fantasia de ser pai/mãe de si mesmo e sair melhor ao final. Há quem ache que ter filhos é um gesto magnânimo e não tê-los é sinal de egoísmo, escamoteando que as motivações reais são sempre por interesse próprio.

Mas há também os casos nos quais a infância foi duríssima, cheia de episódios de violência, ou perdas e, ainda assim, carregada de afetos amorosos. O desejo de proporcionar aos filhos uma vida idílica passa por suplantar as lembranças terríveis de pais e mães. O que não pode ser consertado no passado, que o seja no futuro.

Aí começa um processo, que associa expectativas narcísicas ligadas à prole e busca por reparação, somadas a uma época na qual o céu é o limite em termos de idealizações.

Nesse caldo de cultura e histórias únicas, teremos pais e mães projetando o impossível para seus filhos: uma vida sem escorregadas, sem sofrimento e sem perdas.

Ao tomar para si a felicidade e a satisfação dos filhos, com a melhor das intenções de ver no outro o que não puderam viver na própria pele, criam uma pressão inadvertida sobre a criança.

Primeiro porque os seres humanos carregam uma angústia existencial que não há gadget que resolva. Aliás, o consumo é impulsionado pela promessa de que faria. Salvo o delírio pavoroso de criar sujeitos sem subjetividade, eles sofrerão pelo simples fato de existirem e serem conscientes disso.

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Outra razão se relaciona com a própria tentativa de filtrar as histórias de sofrimento das gerações anteriores. As próximas gerações são herdeiras das glórias e tragédias das anteriores. Elas têm direito a essas histórias, que se não lhes chegam pelas palavras dos cuidadores, tanto pior, chegarão em ato. É aí que o barato sai caro e aquilo que foi feito para evitar o sofrimento pode voltar como sensação de desespero para pais e mães. Como se os percalços dos filhos remetessem ao horror da própria infância, agora sem a esperança de reparação e atravessado pela culpa de quem prometeu mas não cumpriu.

As crianças, num gesto de confiança na capacidade dos pais de aguentarem seu sofrimento —deles e delas— podem criar sintomas que os obriguem a encarar o engodo da infância idílica. Aí, talvez, seja o lugar no qual os filhos realmente encarnam nossas esperanças. Onde eles nos obrigam a ver que os adultos não estão lá para impedir o sofrimento, mas para não se furtarem diante de sua existência.

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