O canalha no tanquinho de areia

Lembro muito da infância. Não só de fatos, histórias que vez por outra são projetados na tela da consciência, feito curtas de super 8. Trago também opiniões formadas aos dois, quatro ou seis anos que seguem intocadas —e, também, vez por outra, são trazidas à baila.

Como um Muro de Berlim, o alambrado cindia o pátio da escola e o tanque de areia em dois. Do meu lado, as crianças de um a quatro anos. Do lado de lá, os mais velhos, dos cinco aos sete —quase adultos, aos meus olhos. Estava num recreio. Fui cavoucando, cavoucando, cavoucando, até que a minha pá (de plástico, branca, lembro bem) caiu pra lá do alambrado. Um menino mais velho, chamado Lucas Amadeu, viu. Viu que eu vi. Me olhou nos olhos. Pegou a minha pá e saiu andando. Aí está um mau caráter, pensei — e nunca me esqueci.

Trinta anos depois, reencontrei o Lucas Amadeu, num bar. "Oi". "Lembra de mim?". "Estudamos juntos". "Pois é". "Olha só". Papo vai, papo vem, ele me disse que tinha feito engenharia e trabalhava em alguma coisa no mercado financeiro. Todo feliz, usando termos complexos como "alavancagem", "hedge funds" e "subprimes", explicou, basicamente, que ganhava a vida pegando as pás que caíam dos menores e metendo-as no bolso.

Não me entendam mal. Tenho amigos queridos do mercado financeiro, que inclusive me ajudam com dicas de como cuidar das modestas pazinhas que tento juntar, ao longo da vida. A história é mais sobre o operador do que sobre o sistema. Meu ponto é: o canalha não se revela só num incêndio ou na invasão da Normandia, o canalha se revela no tanquinho. O problema, meus amigos, é que o tanquinho de areia nos segue pelo resto da vida —e nem sempre estamos do lado certo.

Tive a sorte de ter dois pais. Meu pai biológico e meu padrasto, um grande cara que teve o azar de padecer de uma doença terrível. Em seus últimos anos, foi necessário criar um esquema caríssimo com cuidadores, enfermeiros e uma cornucópia de profissionais que custavam muito mais do que podíamos pagar. Antes que tivéssemos tempo de pedir ajuda, uma turma pequena, porém fiel, de amigos e familiares, nos escreveu oferecendo suporte. Por quatro anos eles depositaram, sem falta, todo mês, parte do dinheiro de que precisávamos.

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Corta pra uma festa, anos depois. Uma feijoada. Tem uma fila. Tô ali, conversando com uma diretora de TV com a qual estou trabalhando. Chega atrás de mim uma amiga da minha mãe, integrante de primeira hora da vaquinha. Ela está sozinha e vejo, com o canto do olho, que me observa. A diretora me conta, porém, empolgada, alguma coisa de seu novo programa. Eu preciso interrompê-la. Virar pro lado. Dizer "oi, fulana, essa é sicrana. Oi, sicrana, essa é fulana". Puxar um assunto que as una. Fazer a mediação.

É a pá caindo do meu lado do alambrado. Eu vejo a pá. Vejo, pela visão periférica, a dona da pá, me pedindo para tomar uma atitude. A diretora segue falando. Tá quase chegando a nossa vez de nos servir da feijoada. É o cara à minha frente terminar de colocar arroz e pronto. Pronto. Ele se serve. Chega a minha vez. Deixo a pá ali, caída, do meu lado do alambrado.

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