"Costa deve afastar do Governo todos os putativos candidatos à sucessão no PS"

💥️Um ano de maioria absoluta. Que balanço faz deste Governo de António Costa?

Não foi um ano fácil. Tem sido um ano conturbado, marcado por muitos ‘casos e casinhos’ e na minha perspetiva há uma explicação para isso. Eu, inclusivamente na última reunião da Comissão Nacional do PS em Coimbra, expliquei por que razão este conjunto de situações estava a ocorrer. Na minha perspetiva, tem a ver com a composição do Governo. Este Governo foi formado por putativos candidatos à sucessão no PS. No fundo, António Costa decidiu transferir para dentro do Governo a tensão e a conflitualidade que devia ser dirimida no seio do partido. Inevitavelmente as agendas pessoais dos ministros elevados à condição de protocandidatos acabaram por se sobrepor à própria agenda do Governo, dando muitas vezes a ideia de uma governação errática e sem rumo, marcada por disputas territoriais. Os resultados estão à vista e estão aliás espelhados nas sondagens onde se nota de facto uma quebra muito acentuada no apoio ao Governo. O que António Costa deve fazer no sentido de reverter esta situação é afastar todos os putativos candidatos à sucessão no PS. Ao Governo o que é do Governo, ao PS o que é do PS. O último local para tratar da sucessão no PS é o Governo. O Governo serve para resolver os problemas do país, não serve para resolver os problemas do PS.

💥️Nesta instabilidade política, como vê a atuação do Presidente da República?

O Presidente de República tem sido bastante interventivo e opinativo. Aliás, o próprio abriu a porta à questão da legislatura não chegar até o fim. O maior risco não é a dissolução da Assembleia da República, é a dissolução do Governo. O Presidente da República só irá dissolver a Assembleia da República se o Governo se auto dissolver primeiro. É preciso que o primeiro-ministro faça uma reestruturação profunda do Governo. Há claramente erros de casting que estão a prejudicar a ação do Governo e essa questão dever ser profundamente refletida pelo primeiro-ministro. Tem havido um problema de descoordenação e de falta de coesão no Governo. Isso tem que passar inevitavelmente por uma reestruturação até do ponto de vista orgânico. Uma das alterações orgânicas que devia ser introduzida seria a função de vice-primeiro-ministro. Alguém que se encarregaria da coordenação interministerial. O primeiro-ministro manifestamente não tem tempo para fazer essa coordenação interministerial de uma forma permanente, até porque tem uma agenda muito preenchida e tem compromissos ao nível da agenda europeia que lhe absorvem muito tempo. Não há condições para que seja o próprio primeiro-ministro a fazer isso. Mas, claramente, deve ter dentro da estrutura do Governo uma pessoa que fique com essa responsabilidade e que tenha autoridade política.Tem que ser uma pessoa a quem seja reconhecido crédito.

💥️Chegou-se a falar de Carlos César para essas funções...

Era uma possibilidade, como haveria provavelmente outras. Agora, realmente era fundamental um cargo de vice-primeiro-ministro, até porque é pernicioso que o poder esteja concentrado nas mãos de uma pessoa só. Isso também tem a ver com o modelo de governança que acho que deve ser desenvolvido porque é muito diferente do atual e isso também passa pelas questões dentro do próprio PS e da democracia interpartidária que tem sido muito maltratada durante a liderança de António Costa. O PS é hoje um partido onde está instituída uma democracia iliberal, onde a representação da minoria interna não é respeitada. Aliás, foi ostensivamente excluída da lista de candidatos do partido às eleições legislativas, quer de 2023 quer de 2023, e às eleições europeias. Os mecanismos de representação e controlo democrático são muito deficientes, a começar nos processos eleitorais e a acabar nas reuniões dos órgãos do partido, cuja periodicidade que está instituída nos estatutos não é respeitada. A comissão política nacional do partido, por exemplo, não reúne há cinco meses e já esteve nove meses sem reunir, quando os estatutos do partido dizem que as reuniões têm de acontecer de dois em dois meses. Outra questão é que não há imprensa livre dentro do PS. O único órgão de imprensa do PS, a Ação Socialista, veicula exclusivamente as posições da liderança e não reflete minimamente a pluralidade de pensamento dentro do partido. É um partido onde as estruturas bases estão praticamente desativadas ou sem vida regular. Tudo isso é muito preocupante num partido com a história do PS, que este ano comemora cinquenta anos. Isto deve ser motivo de uma remodelação profunda dentro e fora do PS. O diálogo, a crítica e a participação são fundamentais para a saúde das democracias e dos partidos. Se os cidadãos se sentem representados, a democracia é sentida como representativa. Mas se os cidadãos não se sentem verdadeiramente representados, o ciclo vicioso da abstenção ganha cada vez mais forma e, inclusivamente, faz crescer os populismos. 

💥️O Presidente da República considera que a dissolução da Assembleia da República neste momento não seria prudente por uma série de razões. Qual é a sua opinião?

O Presidente da República deve fazer tudo para não dissolver a Assembleia da República. Mas o Governo deve ajudar a que o Presidente não tenha razões para o fazer. Não é desejável a dissolução, isso é sempre uma situação anómala em democracia, sobretudo num quadro da existência de uma maioria absoluta de um só partido. Esse é o último recurso, é a chamada bomba atómica, e o Presidente da República decidiu não afastar essa possibilidade logo no dia da tomada de posse deste Governo, avisando o primeiro-ministro quando se falava da eventualidade de uma saída do primeiro-ministro para um cargo europeu. Marcelo disse logo nessa altura que isso implicaria a queda do Governo e a interrupção da legislatura. Essa situação acabou sempre por pairar no ar. Logo a seguir às eleições avisei o PS e disse que o facto de haver uma maioria absoluta não blindava o Governo e a manutenção da legislatura até ao fim. É preciso perceber se a maioria absoluta que foi dada ao PS continua a ter respaldo no apoio popular. Isso é que é preocupante, porque as sondagens realmente revelam que o PS tem vindo a perder de uma forma muito significativa o respaldo dos eleitores. Isso é matéria suficientemente grave para que tenha que haver uma mudança de estratégia e uma mudança de política. O Governo precisa de uma agenda estratégica, que ainda não encontrou. O país precisa de uma agenda reformista e de um projeto transformacional que neste momento não consigo encontrar no atual programa do Governo. É importante que António Costa até revisite alguns documentos que ele próprio produziu no passado, designadamente um documento que foi muito importante na sua ascensão política e que revelava uma preocupação de médio a longo prazo para o país, a chamada ‘Agenda para a Década’ que foi lançada em 2014. Esse documento defendia a necessidade de um conjunto de reformas designadamente uma reforma da lei eleitoral, que é uma reforma absolutamente estruturante. Só há três países na União Europeia, onde não há voto personalizado, ou seja, quando os cidadãos estão impedidos de votar nominalmente nos candidatos da sua preferência. Só há três países onde as listas são fechadas e bloqueadas: Portugal, Espanha e a Roménia. Isso faz com que os portugueses pertençam a um restrito grupo de segunda no quadro da União Europeia, com menos direitos eleitorais que a generalidade dos cidadãos europeus. Esta é uma reforma que realmente é fundamental e um passo muito importante para a reconciliação dos cidadãos com a atividade política e para sentirem que têm uma palavra determinante a dizer na escolha dos seus representantes. 

💥️Há quem defenda como Santana Lopes que António Costa devia demitir o Governo e formar um novo Executivo. Essa solução deveria ser equacionada neste momento ou já é demasiado tarde?

A solução desejável era uma reestruturação profunda do Governo. Disse isso mesmo há três meses a António Costa, até para o Governo poder ganhar uma segunda vida. Para poder de facto recomeçar com um ímpeto fortemente reformista. Há áreas em que são absolutamente necessárias reformas, não apenas no sistema político e eleitoral, mas também nas áreas da fertilidade, da Justiça, da Saúde, da Educação, no modelo económico que está assente na mão-de-obra intensiva e nos baixos salários. Isso é insustentável. Temos que transitar para um modelo económico que aposte no perfil de especialização da economia portuguesa e uma economia assente no conhecimento intensivo e nos recursos altamente qualificados. Só assim conseguimos ser verdadeiramente competitivos, porque os países do alargamento continuam a ultrapassar-nos em termos de rendimento per capita. Ainda agora, a Roménia apanhou-nos. Isto é uma situação que exige uma mudança de paradigma. A única forma de sairmos da cauda da Europa e projetarmo-nos em direção ao pelotão da frente é mudando o nosso paradigma de desenvolvimento. Isso implica reformas, reformas estruturais, que é um termo que António Costa não gosta. 

💥️A legislatura vai chegar ao fim ou parece-lhe que Marcelo Rebelo de Sousa está a encaminhar as coisas de forma a que haja eleições legislativas em 2024?

Sempre achei — e essa foi uma das razões que me levou a não apoiar a candidatura presidencial de Marcelo Rebelo de Sousa — que Marcelo num segundo mandato iria mudar a sua política de cooperação estreita, como tinha no primeiro mandato, em relação ao Governo. Tenho para mim que Marcelo Rebelo de Sousa não quererá ser recordado para a história como o Presidente da República oriundo da direita que foi a muleta do PS e da esquerda. Acredito que o Presidente da República, no seu íntimo, gostaria de ver a sua família política regressar ao poder e ao governo antes de terminar as suas funções como Presidente da República. Portanto, encaro a possibilidade de haver uma crise política. O Presidente da República já sinalizou isso várias vezes, para já afasta uma crise política durante este ano, mas mantém no horizonte a possibilidade de uma crise política em 2024, designadamente, aquando das eleições europeias, que serão o grande teste à continuidade do Governo do PS. Essas eleições vão ser absolutamente decisivas. 

💥️O PS vai ter condições para sair das europeias com uma vitória?

O grande teste do PS vão ser as eleições europeias. O PS precisa de uma vitória ou pelo menos de um resultado que não possa ser interpretada como uma pesada derrota. Se o PS tiver um resultado que fique claramente atrás do PSD, isso colocará o PS e o Governo numa situação de grande fragilidade. Sempre achei que deveria existir uma separação entre a liderança do Governo e a liderança do partido. António Costa devia concentrar-se nas suas tarefas enquanto primeiro-ministro e libertar-se da liderança do PS. António Costa contribuiria para a sucessão, em benefício do PS e do país, se se afastasse da liderança do PS e não se recandidata-se à liderança do partido no próximo congresso. Isso permitir-lhe-ia concentrar-se a 100% nas tarefas da governação, deixando o PS escolher uma nova liderança que pudesse revitalizar o partido e dar-lhe maior autonomia estratégica, até com vista à preparação precisamente das eleições europeias de 2024. Depois de sucessivos episódios graves neste último ano, este caso da TAP parecer ser o que mais tem desgastado o Governo.Para mim e julgo que para a maioria dos portugueses, tendo em conta tudo o que se vai sabendo sobre a gestão pública da TAP e aquilo que tem sido revelado em pouco mais de uma semana de Comissão Parlamentar de Inquérito, é hoje claro que a TAP tinha uma pilotagem política, que interferia amiúde na gestão operacional da empresa. Sabendo isto os portugueses nunca teriam concordado com a nacionalização da TAP, onde foram injetados 3,2 mil milhões de euros de fundos públicos, que nos foi dito que seriam devolvidos e que hoje sabemos que nunca vão ser. Mesmo a correr bem o processo de privatização, sabemos que a TAP na melhor das hipóteses irá valer um terço do valor que lá foi injetado pelo Estado desde a renacionalização. Em termos políticos as consequências têm sido devastadoras. A TAP já fez cair um ministro e dois secretários de Estado e eu temo que não fiquemos por aqui. Não tenho dúvidas que a TAP é um poço de ar que provocou grandes estragos na maioria absoluta do PS. 

💥️As declarações do primeiro-ministro à Lusa antes de embarcar para a Coreia do Sul foram suficientes? 

No fundo, o primeiro-ministro demitiu um secretário de Estado que já tinha sido demitido há muito tempo. Aquela declaração não acrescentou grande coisa. Entretanto também já teve oportunidade de dizer já na Coreia do Sul que retiraria as conclusões no final dos trabalhos da comissão parlamentar de inquérito.

💥️Mas remeter-se ao silêncio é a atuação desejável de um primeiro-ministro?

O primeiro-ministro já devia ter feito uma remodelação profunda do Governo há três meses, ainda a procissão ia no adro. Nessa altura, considerei que tinha sido um mês horribilis para o Governo e para António Costa, mas entretanto não foi só esse mês. Foi uma sucessão de meses horribilis. O primeiro-ministro já devia ter atuado. Quanto mais tempo demorar a reagir mais erosão vai causar ao Governo e ao próprio PS.

💥️No caso do e-mail enviado à presidente executiva da TAP a pedir a mudança de voo do Presidente da República, António Costa conseguiu arrumar a questão, responsabilizando Hugo Mendes que já não está no Governo. Mas sobre a reunião entre o Grupo Parlamentar, o Governo e a CEO da TAP esquivou-se de falar sobre o assunto. Acha normal que haja encontros destes de natureza política com administradores públicos?

Não acho normal e acho indesejável. Essa reunião não devia ter ocorrido. Mais uma vez isso demonstra uma pilotagem política da TAP. A independência do setor empresarial do Estado é fundamental e deve ter administradores independentes e profissionais, sem interferências políticas.


💥️Estas reuniões parecem ser prática comum.
Espero que não. Isso seria mais um sintoma da degenerescência do próprio sistema democrático, o que só dá azo ao crescimento do populismo. Por isso é que estou muito preocupado com o nosso modelo de regime, com a forma como funciona o nosso modelo democrático. Vivemos numa democracia de baixa intensidade e é preciso aprofundar os mecanismos de representação. Isso é fundamental, porque só assim pode haver mais escrutínio, mais prestação de contas. Isso decorre da própria configuração do sistema político que temos em Portugal e que, na minha perspetiva, está completamente desajustada e precisa de ser rapidamente alterada.

💥️Fala-se também na imaturidade e informalidade de alguns governantes, nomeadamente, desta geração mais jovem que inclui Hugo Mendes ou João Galamba. É falta de experiência ou é uma sensação de impunidade que se expressa agora mais com a maioria absoluta?

Tem havido um excesso de confiança na forma como tem sido tratada a coisa pública. Esse excesso de confiança muitas vezes gera abuso. E há também vários problemas de casting. Para se ser membro do Governo, quer na condição de secretário de Estado quer na condição de ministro, tem de se ter uma experiência de vida com provas dadas. Não é só uma experiência política, é uma experiência de vida cívica e profissional. Ou seja, tem que se ter currículo. Não pode ser meramente um currículo político, de passagem pelo Governo ou pelo Parlamento. Não podem ser pessoas que fizeram toda a sua atividade na esfera da política. É preciso que sejam escolhidas pessoas que tenham provas dadas profissionalmente, pessoas com currículo reconhecido, que no fundo justifique a opção de lhes ser confiada uma responsabilidade imensa. As pessoas que vão para o Governo não estão a tomar decisões em seu nome. Estão a tomar decisões em nome dos portugueses, portanto, tem que haver garantias que as estão preparadas, que têm um nível de preparação e maturidade suficiente. Isso nem sempre tem acontecido.

💥️Neste Governo António Costa até escolheu alguns nomes que não tinham experiência na política, nomeadamente para a Defesa ou para Justiça, mas a quem também ainda não se reconhece grande obra.

Há bons e maus exemplos. Há um exemplo que devia ser seguido que é o de Mário Centeno. Era e é um independente, nunca foi militante do PS. É um técnico, se quisermos um tecnocrata, mas que rapidamente adquiriu experiência política. No princípio, tinha uma manifesto défice em termos da capacidade de gestão política, isso era evidente, era notório. Mas, rapidamente, conseguiu ganhar essa expertise política. Era uma simbiose muito bem conseguida entre a capacidade técnica e a capacidade política. É preciso encontrar pessoas com esse perfil. Admito que provavelmente não há muitas, mas Mário Centeno é um bom exemplo a esse nível. 

💥️Acha que, nas lógicas internas da sucessão, António Costa coloca figuras da órbita de Pedro Nuno Santos em pastas mais difíceis de gerir para de certa forma queimar essa ala do PS? 

Não sei o que António Costa ganharia com isso, mas percebo esse raciocínio. Por isso é que António Costa deve limpar o Governo dos putativos candidatos à sucessão. Isso contamina a ação do Governo e prejudica como se tem visto. A primeira coisa que António Costa deve fazer é precisamente retirar do Governo todos os protocandidatos à liderança do partido. É uma medida absolutamente fundamental para que o Governo se possa centrar nas tarefas da governação e não seja contaminado pela lógica da luta partidária e não se transforme num campo de batalha entre as diferentes fações do costismo.

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