A família que ajudou a desvendar origem genética da esquizofrenia

A família Galvin na Academia da Força Aérea dos EUA, 1961 — Foto: Arquivo pessoal via BBC 1 de 2 A família Galvin na Academia da Força Aérea dos EUA, 1961 — Foto: Arquivo pessoal via BBC

A família Galvin na Academia da Força Aérea dos EUA, 1961 — Foto: Arquivo pessoal via BBC

Um dia, em 1972, em Woodmen Valley, um lugar cheio de florestas e terras agrícolas entre colinas íngremes e planaltos no Estado do Colorado, nos Estados Unidos, duas pessoas saíram de casa pela porta que levava ao quintal.

Donald, de 27 anos, de olhar profundo, cabeça raspada e o início de uma barba por fazer, caminhava com a irmã Mary, de 7, de cabelos loiros.

A cena era idílica: o quintal cheirava a pinho fresco e doce, pássaros voavam sobre o jardim enquanto o animal de estimação da família, um cachorro chamado Atholl, montava guarda.

Embora o irmão fosse mais velho, era Mary quem o levava para o topo de uma colina. Ela tinha um plano: queimá-lo na fogueira, como faziam com os hereges nos filmes que a mãe deles via.

O irmão havia sugerido que fizessem um balanço no galho de uma árvore, para o qual precisavam de uma corda, mas, uma vez que escolheram um dos pinheiros mais altos, a menina disse a Donald que o que ela queria era amarrá-lo na árvore.

Ele concordou sem problemas. Ela trouxe a lenha e a distribuiu ao redor dos pés descalços do irmão.

Meio século depois, a mesma Mary, que tinha mudado seu nome para Lindsay, contou ao jornalista e escritor Robert Kolker os fatos que marcaram aquele dia.

Ao lado da irmã Margaret, elas revelaram ao mundo a incrível história de uma família que, por um tempo, foi o retrato perfeito do sonho americano do pós-guerra, comandada por um veterano da Segunda Guerra Mundial e sua mulher, uma mãe que assava bolos e fazia as roupas para os 12 filhos (dez homens e duas mulheres).

Mas tudo não passava de fantasia — até mesmo essa história de Mary.

Donald não era um irmão comum. A vida de Mary também estava longe de ser corriqueira.

Donald a reverenciava porque estava convencido de que ela era Maria, a santa Virgem e mãe de Jesus Cristo. Ele, por sua vez, acreditava ter recebido um diploma em "exercício espiritual e teologia" das mãos de Santo Inácio.

Donald recitava em voz alta orações, como o Credo dos Apóstolos e o Pai Nosso, e uma ladainha que ele chamou de Sagrada Ordem dos Sacerdotes. Nomes e frases como "'Deo optimo maximo', Beneditino, Jesuíta, Ordem do Sagrado Coração, Imaculada Conceição, Maria Imaculada, Ordem dos Oblatos Sacerdotes..." eram entoadas dia e noite, sem cessar.

Em seus melhores dias, ele vestia um lençol marrom-avermelhado no estilo de um monge. Às vezes, completava o vestuário com um arco e flecha de plástico. Além disso, fazia caminhadas por horas, às vezes parando em lugares com pessoas - que faziam de conta que não o conheciam ou acabavam intimado ele a ir embora.

Em outros dias, permanecia nu, sentado na sala da casa, em completo silêncio.

Às vezes, Mary voltava da escola para encontrá-lo ocupado com tarefas que só ele conseguia entender, como tirar todos os móveis da casa ou jogar sal no aquário para envenenar os peixes.

A mãe, por sua vez, se comportava como se tudo fosse normal, mesmo tendo que chamar a polícia quando o filho tinha acessos de fúria e violência.

Enquanto os outros irmãos encontravam desculpas para ficar longe de Donald, Mary, a mais nova de todos, muitas vezes não tinha escolha a não ser ficar com ele.

E, apesar da pouca idade, sabia que não podia chorar nem reclamar: o irmão mais velho não era o único com comportamento estranho. Os pais sempre observavam todos os filhos, à espera de qualquer sinal preocupante.

No meio desse pesadelo, a menina de 7 anos teve a ideia do plano de se livrar do irmão queimando-o numa fogueira.

Mas tudo não passou de um grito de desespero: ela não cogitou matar Donald. Mary não era como os outros, e provaria isso para os pais e para si mesma.

Ela não sofria do mal que assolava a família, mas não conseguia escapar da sombra e dos efeitos de tudo aquilo.

Toda essa história é apresentada por Robert Kolker no prefácio do aclamado livro The Boys of Hidden Valley Road: Inside the Mind of an American Family ("Os Meninos de Hidden Valley Road: Por Dentro da Mente de uma Família Americana", em tradução livre).

A obra é resultado de horas de entrevistas com os membros da família Galvin e de leituras de pesquisas e artigos científicos.

Os Galvin constituíram um caso único de uma doença desconcertante: a esquizofrenia.

Além de Donald (nascido em 1945), o primeiro a ser acometido pela enfermidade, outros cinco irmãos sofriam desse distúrbio cerebral que engloba uma ampla variedade de sintomas de maneiras completamente diferentes.

"Foi uma grande reviravolta. Isso marcou o momento em que a família não conseguia mais esconder o que estava acontecendo. Eles não podiam mais ficar nas sombras e tiveram que pedir ajuda."

Os Galvin não tinham feito isso antes, explica o autor, porque "sabiam que, no momento em que tornassem público o que estava acontecendo, o destino de toda a família mudaria — e o futuro das crianças que não estavam doentes seria afetado". Eles então mantiveram a situação em segredo enquanto puderam.

Mimi, a mãe, tinha aprendido a fingir que nada do que ocorria era estranho.

"Fazer qualquer outra coisa seria o mesmo que admitir que ela não tinha controle real sobre a situação, que não conseguia entender o que estava acontecendo na própria casa, e muito menos como controlar o problema", analisa Kolker.

"Em outra família, eles poderiam acabar na rua e esquecidos", avalia o escritor.

Ela também teve que cuidar do marido, que sofreu um acidente vascular cerebral (AVC).

A família inteira foi celebrar o doutorado do pai em 1969 — Foto: Arquivo pessoal via BBC 2 de 2 A família inteira foi celebrar o doutorado do pai em 1969 — Foto: Arquivo pessoal via BBC

A família inteira foi celebrar o doutorado do pai em 1969 — Foto: Arquivo pessoal via BBC

"Você pode até se perguntar por que ela não buscou ajuda de um médico - mas se pensar em como especialistas tratavam pessoas como problemas mentais na época, é possível compreendê-la. É aí que se começa a entender como a família estava presa, perdida e confusa."

Durante muito tempo, as opções terapêuticas mais comuns se limitavam a dois caminhos, informa o autor.

"Um grupo de médicos entendia que a esquizofrenia era um problema genético e tentavam curá-la com terapias de choque elétrico e lobotomias... eram colocados em hospitais psiquiátricos de onde nunca mais sairiam."

Essa segunda opção devastou Mimi.

"Fiquei arrasada", revelou ela a Kolker. "Eu achava que era uma boa mãe. Assava um bolo e uma torta todas as noites. Sempre tinha gelatina com chantilly."

O que então, após todos esses anos, levou os Galvin a querer tornar públicos os detalhes de uma história que havia sido mantida em silêncio por tanto tempo?

Além disso, Mimi já estava na casa dos 90 anos. A família então pensou: "É agora ou nunca".

No entanto, o interesse não era apenas contar o que aconteceu. "Eles também estavam genuinamente curiosos em saber se a família Galvin acabou contribuindo de alguma forma com a ciência", acrescenta Kolker.

"Eles sabiam que cientistas haviam estudado o caso deles, e que em algum momento foram vistos como um caso de grande importância, e achavam que alguém como eu poderia averiguar se isso teve alguma consequência."

O "perfil" genético da esquizofrenia tem desafiado o diagnóstico de casos até hoje, explica o autor.

Os pesquisadores sabem que um dos maiores fatores de risco para a doença é a hereditariedade, mas a enfermidade não parece ser transmitida diretamente de pais para filhos.

Psiquiatras, neurobiólogos e geneticistas achavam que havia uma mutação específica no DNA que provocava a enfermidade, mas não conseguiram encontrá-la.

Em virtude do grande número de casos, os Galvin ofereceram uma oportunidade rara: estudar seis indivíduos que compartilham uma linhagem genética idêntica, já que foram concebidos pelo mesmo pai e pela mesma mãe.

A partir da década de 1980, toda a família passou a ser objeto de pesquisas. O material genético deles foi analisado pelo Centro de Ciências da Saúde da Universidade do Colorado, pelo Instituto Nacional de Saúde Mental e por mais de uma farmacêutica.

Agora sabemos que amostras do material genético dos Galvin formaram a base de estudos científicos que ajudaram a entender melhor a esquizofrenia.

Ao analisar os DNAs deles e compará-los com amostras genéticas da população em geral, os pesquisadores ficaram ainda mais próximos de fazer avanços significativos no diagnóstico, no tratamento e até na prevenção da esquizofrenia, observa o escritor.

Por muito tempo, os Galvin não tinham ideia de que poderiam estar ajudando outras pessoas e do quanto a contribuição deles tinha sido promissora."

A partir dos estudos com o DNA dos irmãos, foi possível descobrir que a esquizofrenia possui realmente um fundo genético. Isso enfraqueceu de vez as teorias de que a doença teria algo a ver com a educação ou à forma como foram criados pelos pais.

A família recebeu essas informações com alívio e satisfação. De repente, Mimi se dispôs a falar mais sobre o passado.

Para o escritor, o que mais chamou a atenção foi que "os seis irmãos sem a doença mental encontraram seu caminho e levaram uma vida normal".

"Nenhum deles acabou como sem-teto ou viciado em drogas."

"O simples fato de querer continuar a fazer parte daquele grupo depois de experiências tão traumáticas me surpreendeu. Por que eles não foram embora na primeira oportunidade e nunca mais voltaram?", pontua.

"Todos desenvolveram maneiras de permanecer conectados uns aos outros."

"Com Lindsay, por exemplo, pude ver como suas atitudes em relação à família foram mudando."

"Primeiro, ela quis ir embora, depois, veio a raiva. Na sequência, desejava resgatar alguns dos irmãos que ainda precisavam de ajuda e, finalmente, ela se estabeleceu em um papel de cuidadora muito semelhante ao que a mãe desempenhou por muitos anos", diz o autor.

Lindsay viveu décadas tentando entender a própria infância — e esse projeto continua de pé.

Ela aprendeu que a chave para entender a esquizofrenia é que essa chave continua distante e vaga.

Há uma lista de sintomas, várias formas de apresentação da doença e indicadores que se modificam de acordo com cada paciente.

Os psiquiatras dizem genericamente que a doença causa "afrouxamento das associações e pensamento desorganizado".

No entanto, quase ninguém pode explicar por que, quase meio século depois do dia em que ela e o irmão subiram a colina, Donald continua recitando a ladainha religiosa — ou por que, por quase tanto tempo, manteve a ideia fixa de que era filho de um polvo.

Mas assim que Donald vê a irmã mais nova chegar à instituição onde vive, se levanta, pronto para sair. Ele sabe que, quando Lindsay o visita, é para levá-lo para ver a família.

O que você está lendo é [A família que ajudou a desvendar origem genética da esquizofrenia].Se você quiser saber mais detalhes, leia outros artigos deste site.

Wonderful comments

    Login You can publish only after logging in...