'Direitos humanos não são relevantes para o negócio': o histórico da FIFA com governos autoritários
Na véspera de partida nesta quarta-feira (23/11), jogadores da Alemanha posaram para foto com a mão na boca, em protesto contra restrições a que atletas têm sido submetidos em sua expressão política — Foto: Reuters
O histórico do Catar em relação aos tratamento de direitos humanos tem gerado protestos contra a realização da Copa do Mundo de futebol no país desde o anúncio da escolha do anfitrião, 12 anos atrás.
Geraram revolta não apenas a postura do país quanto aos direitos da população LGBT (homossexualidade é crime no país) e das mulheres, mas também pelo esquema de trabalho para estrangeiros que levantaram os estádios e que foi considerado desumano e análogo à escravidão pela Anistia Internacional.
A postura da FIFA, que organiza o campeonato, diante da monarquia absolutista que governa o Catar também gerou inúmeros protestos.
A FIFA costuma impor uma série de regras aos anfitriões, que muitas vezes entram em conflito com a legislação local. No Catar, no entanto, a FIFA aceitou sem reclamar a proibição de venda de bebidas alcoólicas nos estádios anunciada pela monarquia dois dias antes do início do torneio e proibiu os jogadores de fazerem manifestações durante as partidas.
Na quarta-feira (23/11), jogadores da Alemanha taparam as próprias bocas durante a foto oficial do primeiro jogo do time em protesto contra a proibição. Muitos integrantes do time queriam usar a braçadeira com as cores do arco-íris "One Love", de apoio à causa LGBT, mas seu uso foi proibido pela entidade.
"A Fifa não se importa com direitos humanos, isso não é relevante para o negócio", afirma o historiador do futebol Flávio de Campos, professor de História da USP e coordenador do Ludens, núcleo interdisciplinar de pesquisas sobre jogos. "Ela é muito pragmática no sentido de realizar as atividades e os eventos independente dessas questões."
Campos se refere não somente à Copa do Catar, mas ao fato da FIFA de se relacionar sem problemas com governos autoritários e que ferem direitos humanos desde os primeiros campeonatos.
Entenda o histórico da entidade com governos autoritários.
Em 1978, a Argentina era governada por uma brutal ditadura militar que havia chegado ao governo dois anos antes através de um golpe militar. Mas a FIFA decidiu realizar a Copa no país mesmo assim.
"Havia um mundial transcorrendo enquanto a tortura era praticada em grande volume na Argentina", diz Flávio de Campos. "Não existe nenhum limite do que um governo pode fazer desde que o negócio esteja dando dinheiro, desde que se alimente esse complexo econômico."
O clima político no país era bastante conturbado, com inúmeros protestos sendo feitos pelas Mães da Praça de Maio, que buscavam seus filhos desaparecidos.
A organização do torneio foi marcada por muitos problemas e polêmicas. Muitos estádios ficaram prontos no último minuto, com gramados recém-plantados se soltando durante os jogos. O governo foi acusado de favorecer o time da Argentina, já que os jogos dos anfitriões aconteceram todos em Buenos Aires, com os adversários precisando viajar pelo país.
A escolha da Argentina tinha acontecido anos antes, mas diante dos crimes da ditadura, o então chefe da Fifa, João Havelange, foi pressionado para mudar a sede do torneio para a Europa, o que não aconteceu.
A mudança não seria algo impossível, afirma Campos, tanto que aconteceu algumas copas depois, em 1986, quando a Colômbia desistiu de receber o Mundial e a Copa foi realizada no México.
A realização do torneio não aconteceu sem protestos.
Houve uma forte campanha pelo boicote da Copa, explica Mateus Gamba Torres, professor de história da Universidade de Brasília. "Houve bastante protesto internacional. Alguns jogadores boicotaram, não foram. E outros, que foram, participaram das manifestações da Praça de Maio", afirma Torres.
"O time da Holanda, que foi para a final, afirmou que se ganhasse não iria receber a taça das mãos do Videla (o ditador em 1978)", diz o historiador. O campeonato acabou sendo vencido pelo time da casa — e a taça não foi entregue pelo ditador.
A segunda Copa do Mundo FIFA da história, em 1934, foi realizada na Itália governada pelo ditador fascista Benito Mussolini.
Mussolini queria tanto que o país fosse o anfitrião que destacou um general, Giorgio Vaccaro, presidente da Federação Italiana de Futebol, para negociar com a FIFA.
Vaccaro prometeu um grande investimento no evento (3,5 milhões de liras). E, 1932, a Itália venceu a disputa contra a Suécia para sediar a Copa.
Campos também cita a administração de Vladimir Putin como um governo autoritário com quem a FIFA decidiu fazer parceria para realizar a Copa — no caso, a Copa de 2018 na Rússia.
Nominalmente uma democracia, a Rússia ainda tem eleições. "No entanto, pode ser considerado um governo autoritário pelos inúmeros mecanismos de perpetuação de poder criados por Vladimir Putin, que lidera o país (como presidente ou primeiro-ministro) há 22 anos", diz Campos.
Mesmo em 2018, muito antes dos embargos e reprimendas internacionais por ter invadido a Ucrânia, a Rússia de Putin já enfrentava críticas pela perseguição a opositores políticos, pelo controle da imprensa, pelo ambiente hostil ao público LGBT e por usar mecanismos de vigilância e controle de informações. Também já havia acusações de interferência nas eleições americanas.
A realização destes Mundiais em países com governos autoritários mostram que a falta de democracia não só não é considerada um problema, mas pode ser vista como um ponto positivo pela FIFA, dizem os historiadores.
A própria FIFA já admitiu que considera "democracia demais" uma "dificuldade".
Em 2013, o então secretário geral da entidade, Jérôme Valcke, disse que "democracia demais" pode atrapalhar a organização do mundo.
"Vou dizer algo que é maluco, mas menos democracias às vezes é melhor para organizar a Copa do Mundo", afirmou Valcke em um evento.
"Quando você tem um chefe de Estado forte que pode tomar as decisões, como talvez o (presidente russo Vladimir) Putin possa fazer em 2018... Isso é mais fácil para nós organizadores", afirmou Valcke.
O dirigente falava sobre o que considerava as dificuldades de organizar o evento no Brasil, que teve protestos contra a Copa e greve de trabalhadores na construção dos estádios antes do Mundial de 2014.
"(No Brasil) há várias pessoas, vários movimentos e vários interesses e é bastante difícil organizar uma Copa do Mundo nessas condições", afirmou.
A BBC procurou a FIFA para comentar tanto a fala de Valcke quanto as críticas sobre sua relação com governos autoritários, mas não teve resposta.
No entanto, em diversas ocasiões, o atual presidente da FIFA, Gianni Infantino, rebateu críticas sobre a postura da entidade e sobre a forma como o Catar trata os trabalhadores imigrantes, a população LGBT e as mulheres.
Infantino, que é italiano e suíço, disse em um pronunciamento em 19 de novembro em Doha, um dia antes da abertura da Copa, que sabe o que é ser discriminado porque "sofreu bullying na escola por ser ruivo e ter sardas".
"Hoje eu me sinto catariano, me sinto árabe. Hoje me sinto africano. Me sinto gay, me sinto uma pessoa com deficiência. Me sinto como um trabalhador imigrante", disse ele.
Infantino também afirmou em outra ocasião que a realização da Copa no Catar é uma coisa positiva porque "foram feitos diversos avanços" de direitos humanos no país por causa da atenção que o país ganhou com o evento.
Campos afirma que há um motivo financeiro para a FIFA escolher países com governos autoritários, já que eles tendem a investir grandes somas de dinheiro no evento — em países democráticos, tende a haver mais transparência e escrutínio sobre o uso de dinheiro público para o mundial.
"Governos autoritários gastam muito mais dinheiro, sem ter quem fiscalize. É só olhar o quanto o Catar investiu em 2022 (US$ 220 bilhões, a Copa mais cara da história). A Argentina investiu muito mais que outros países que fizeram o evento 4, 8 anos depois", afirma Mateus Gamba Torres, da UNB.
"Em um país autoritário tem censura para tudo, os dados não são divulgados. Os trabalhadores nem cogitam fazer greve, e na hipótese de haver uma, ela é duramente reprimida", diz Torres.
"A Fifa não se importa com direitos humanos. Quer estádios prontos para vender ingresso, para vender patrocínio."
Ao mesmo tempo, lembra ele, há um risco envolvido até mesmo do ponto de vista de negócios.
"O que menos existe em ditadura é estabilidade e cumprimento de contrato", afirma. "Veja a proibição de cerveja que o Catar anunciou dois dias antes da Copa começar. Isso não deve ter caído nem um pouco bem com os patrocinadores", diz.
"Eles podem dar discursos que os direitos humanos avançaram por causa da Copa, mas é hipocrisia, porque em nenhum momento a FIFA exigiu essas melhoras", diz Flávio Campos. "E ao decidir fazer o evento ali, dá um destaque, dá uma legitimação ao governo."
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-63739138
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