Há 50 anos vestindo a Velha Guarda do Salgueiro, Tia Arlete nunca fez uma fantasia para ela e desfila com camisa de apoio
Aos 85 anos, Tia Arlete, que está completando 50 anos de costuras no Salgueiro, pensa em aposentar agulhas e linhas — Foto: Alba Valéria Mendonça/g1 Rio
Os números impressionam. São 85 anos de idade, 50 anos de Acadêmicos do Salgueiro- sendo 27 deles trabalhando no barracão - e 15 anos desfilando na Sapucaí. Ela diz que a cabeça já não está tão boa, mas a escola não quer perder sua mais antiga, querida e talentosa costureira: Arlete Miranda Ferreira. Ela diz que quer se aposentar, mas nem pensa em abandonar sua escola de coração.
O curioso é que mesmo sendo a responsável por vestir segmentos importantes da escola, Tia Arlete, como é conhecida, nunca confeccionou uma fantasia para ela própria. Discreta, este ano, ela é responsável pela indumentária da Velha Guarda, dos compositores e dos mestres de bateria. Tia Arlete, ainda balança entre a aposentadoria e a continuidade do trabalho no barracão.
"A cabeça já está cansada e ainda nem sei a letra do samba deste ano. Mas quando ouço a bateria tocar não dá para ficar parada, né? Há 50 anos meu coração é vermelho e branco. Ah, ver o Salgueiro na avenida é uma beleza", disse Tia Arlete, filha de pai portelense e mãe mangueirense, mas que nunca desfilaram.
E trabalho é que não falta no ateliê dela, montado no fundo do barracão do Salgueiro, na Cidade do Samba. Há duas semanas do desfile as 90 indumentárias da Velha Guarda descansam prontas, encapadas e penduradas numa arara, enquanto ela e a ajudante Joana se dedicam aos trajes dos mestres de bateria.
"Dá muito trabalho. Diferentemente de roupa de ala, que é dividida em P, M e G, peça de alfaiataria a gente tem de pegar as medidas - altura de perna, cintura, quadril, peito, braço, etc. - de 90 pessoas. Tem de fazer um por um, calça, saia, camisa social, terno forrado, capa. Ela tem de sair 99,9% certinha do barracão. As de ala, a gente entrega com antecedência e o componente dá o seu jeitinho. Com alfaiataria tem de sair perfeita. Não dá para a Velha Guarda desfilar toda despencada, né?", disse a costureira.
2 de 3 Tia Arlete, responsável pelas roupas da Velha Guarda, compositores e diretoria nunca fez uma fantasia para ela própria — Foto: Alba Valéria Mendonça/g1 RioTia Arlete, responsável pelas roupas da Velha Guarda, compositores e diretoria nunca fez uma fantasia para ela própria — Foto: Alba Valéria Mendonça/g1 Rio
Para isso, ela está praticamente morando no barracão desde o dia 7 de novembro, quando começaram a chegar os tecidos e os figurinos para o carnaval de 2023. Até a entrega de todas as fantasias, Tia Arlete só vai para sua casa, no Méier, na Zona Norte, nos fins de semana.
"Assim, não perco tempo no transporte. Já acordo aqui e começo a costurar sem barulho. E quando todo mundo vai embora, desço, tomo meu banho, janto, vejo minha novela e durmo sem preocupação de ter de levantar de madrugada, gastar tempo e dinheiro no transporte", contou a costureira que também está confeccionando a fantasia de três crianças da ala mirim.
Caprichosa, ela gosta de costura trabalhosa, ornamentada, cheia de detalhes. Afinal, antes de ingressar no carnaval, confeccionava vestidos de noiva, damas, madrinhas e para festas de 15 anos. Ela conta que começou no carnaval por acaso. Ela saiu de um casamento de 19 anos e foi parar num ateliê de escola de samba.
"No começo, costurava em casa, fazendo as roupas dos compositores. Fiz para a Imperatriz, para a Porto da Pedra, onde conheci o carnavalesco Mauro Quintaes, e para o próprio Salgueiro. Aí, fui apresentada ao então presidente do Salgueiro, o Osmar Valença, ele gostou do meu trabalho e comecei a fazer as roupas de toda diretoria e da equipe de shows, que se apresentava no Scala. E fui ficando", contou a costureira, que também fez fantasia da Unidos do Jacarezinho e ala da Caprichosos de Pilares.
Durante 23 anos, ela costurou basicamente para diretoria do Salgueiro. Fez roupas para os presidentes Miro, Maninho e Fu e das respectivas diretorias da escola. Mas conforme o trabalho ia aumentando, começou a faltar espaço dentro de casa.
"Quando reencontrei o Mauro Quintaes no Salgueiro, aí, não teve mais jeito. Ele logo me passou fantasias de alas, dos artistas, compositores e Velha Guarda. Tive de ir para o barracão e não parei mais. Também me orgulho de ter feito durante muitos anos a fantasia de Tia Glorinha, presidente da ala das baianas, que é um destaque da escola", lembrou Arlete.
Ela não só dava conta do recado, como paralelamente ainda fez vestidos de noiva, dos 15 anos de uma neta e de uma sobrinha e participou da equipe de figurinos da novela "Terra Nostra", da TV Globo.
"Dava trabalho, mas era mais jovem. Hoje, não faço mais essas loucuras, não. Estou cansada, mas não gosto de ficar parada. Durante a pandemia, quando não teve carnaval, tive depressão. Minha cabeça está cansada, mas não consigo ficar longe do carnaval", afirmou Tia Arlete.
3 de 3 Tia Arlete orienta sua auxiliar Joana, na confecção de fantasias do Salgueiro: desde novembro, morando no barracão — Foto: Alba Valéria Mendonça/g1 RioTia Arlete orienta sua auxiliar Joana, na confecção de fantasias do Salgueiro: desde novembro, morando no barracão — Foto: Alba Valéria Mendonça/g1 Rio
Mas ao mesmo tempo que ela pensa em aposentar linhas e agulhas, diz que não quer se afastar do carnaval.
"O físico ainda aguenta. Gosto de desfilar, ver a multidão aplaudindo aquela beleza que a gente bota na avenida, afinal aqui no barracão só tem artista. Digo que vou parar de trabalhar, mas o jogo só acaba quando o juiz apita. Então, não posso garantir nada, né?", disse Tia Arlete.
Embora já tenha produzido milhares de fantasias para o Salgueiro, Tia Arlete só passou a desfilar há 15 anos, sempre com camisa de apoio ou da diretoria. No melhor estilo "em casa de ferreiro, espeto de pau", como ela mesma observa.
"Sou uma artista do barracão. Tenho de fazer a escola brilhar na avenida. E isso, acho que tenho feito direitinho nesses 50 anos, né?", disse a discreta e talentosa Tia Arlete.
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