'É muito desconcertante o silêncio de Lula sobre Ortega', critica escritor nicaraguense exilado pelo regime
Sergio Ramírez em foto de 3 de março de 2023 — Foto: Inti Ocon/AFP
O escritor nicaraguense Sergio Ramirez vive o segundo exílio. Da primeira vez, foi alvo da ditadura Somoza, regime contra o qual lutou, nos anos 1970, ao lado do líder da Frente Sandinista de Libertação Nacional, Daniel Ortega. Viu o antigo companheiro virar presidente e depois ditador da Nicarágua, atualmente em seu quarto mandato consecutivo.
O mais prestigiado escritor do país foi vice-presidente de Ortega entre 1986 e 1990. Ambos romperam por visões antagônicas sobre a democracia e trilharam caminhos diferentes. Nesta entrevista ao 💥️g1, ele traça um retrato sombrio de seu país, de onde mais de 200 presos políticos foram deportados pelo regime num voo para os EUA e, tornados apátridas, da noite para o dia.
Ramirez recebeu apoio e ofertas de cidadania de vários governos da América Latina, como Equador, Colômbia e Chile. Do Brasil, constata apenas um silêncio que admite ser desconcertante e incômodo. “Antes de falar de diálogo, o Brasil deve se pronunciar em respeito à democracia na Nicarágua e à barbárie que significa retirar a cidadania de nicaraguenses que se opõem ao governo”, afirma.
💥️Leia abaixo a entrevista de Ramirez:
💥️Todas as figuras proeminentes da oposição estão agora condenadas ao exílio forçado e sem a sua nacionalidade nicaraguense. Que futuro vê para o seu país?
💥️Sergio Ramirez – Trata-se de um país onde as instituições democráticas estão desarticuladas, toda a oposição está no exílio e há presos políticos, entre eles o bispo Rolando Alvarez. O país não tem jornal impresso, todos os meios de comunicação são produzidos fora do país e são transmitidos eletronicamente. É uma situação de ausência total de democracia, é uma luta muito difícil a que a oposição terá que empreender pela força democrática e de maneira pacífica para restabelecer a democracia sem confrontos ou derramamento de sangue.
2 de 3 Sergio Ramirez em Madri, em setembro de 2023 — Foto: Pierre-Philippe Marcou/AFPSergio Ramirez em Madri, em setembro de 2023 — Foto: Pierre-Philippe Marcou/AFP
💥️Como se consegue uma mudança de regime, já que é cada vez mais difícil enfrentar Ortega?
💥️Sergio Ramirez – A ditadura na Nicarágua perdeu toda a legitimidade e todo o crédito internacional. Um regime que se vale exclusivamente da repressão não pode durar muito tempo, não pode ser eterno. É um regime que não tem nenhuma classe de consenso social. O consenso que um dia teve com a empresa privada, a Igreja Católica e a classe média não existe mais, milhares de pessoas fugiram do país. Então, não tem bases firmes de sustentação. Todas as medidas que tomou, como libertar os presos políticos e retirar a sua nacionalidade, são para mim uma mostra de debilidade e não de fortaleza.
💥️Por que o senhor vê o exílio dos opositores como um sinal de fraqueza do regime?
💥️Sergio Ramirez – As medidas extremas nunca são uma demonstração de fortaleza. É a primeira vez na história da América Latina que um regime autoritário retira a nacionalidade de maneira massiva de cidadãos que se opõem a ele. O único antecedente distante foi o regime de Pinochet e o fez de maneira seletiva.
💥️O senhor tinha Ortega como aliado contra a ditadura de Somoza. Como e quando percebeu que ele estava se transformando em ditador?
💥️Sergio Ramirez – Depois das eleições de 1990, quando Ortega foi derrotado por Violeta Chamorro e fez uma oposição violenta contra o novo governo eleito democraticamente. Não respeitou a regra de democracia que nós mesmos ajudamos a criar. Em 2006, depois de várias tentativas de regressar à Presidência, Ortega venceu a eleição, mas não baseado no crescimento e no respaldo à Frente Sandinista, mas apoiado pelo grande capital e pela Igreja Católica. Fez aliança com um presidente corrupto, Arnaldo Alemán, que promoveu uma reforma constitucional para reduzir a quantidade necessária de votos para se eleger no primeiro turno.
💥️Como era a sua relação com Ortega quando era vice-presidente?
💥️Sergio Ramirez – Era muito próxima, trabalhamos juntos, compartilhamos tarefas de governo. Não poderia ser uma relação ruim. Ela começou a deteriorar-se quando encabecei o Movimento Renovador Sandinista, que proclamava a democracia como instrumento necessário para realizar o poder, e ele defendia a derrubada do governo de Violeta Chamorro pela violência. Então, houve uma separação muito radical dos caminhos que cada um seguiu.
3 de 3 Sergio Ramirez dá entrevista em Buenos Aires em abril de 2023 — Foto: Juan Mabromata/AFPSergio Ramirez dá entrevista em Buenos Aires em abril de 2023 — Foto: Juan Mabromata/AFP
💥️Qual a sua avaliação da posição do governo brasileiro diante de Ortega?
💥️ Sergio Ramirez – Até agora, para mim, é muito desconcertante a posição do presidente Lula porque é um silêncio demasiado visível e notável. Governos da América Latina, tanto de esquerda quanto de direita, como Equador, Argentina, México, Colômbia, se pronunciaram. Na votação da OEA, o Brasil se absteve de condenar Ortega e tampouco disse uma só palavra. É uma situação que me desconcerta muito porque Lula conhece muito bem a situação da Nicarágua. Ele esteve no país quando era dirigente sindical. Eu o conheci na Nicarágua nos anos 1980, ele foi à minha casa. Lula regressou ao país em 1992 para o I Congresso da Frente Sandinista. Eu o ouvi pronunciar um discurso que não agradou a Ortega, dizendo que não havia duas classes de democracia, mas apenas uma. Não havia democracia proletária, nem democracia burguesa, mas a democracia, que deveria ser respeitada. Já como presidente, voltou à Nicarágua. Então, não se pode dizer que Lula ignora que o país vive uma deriva autoritária, que a Nicarágua transformou um sonho revolucionário em ditadura. Eu acredito que se alguém aconselhou o presidente Lula de que não deve falar porque Ortega é um governo de esquerda, devo dizer que ele não representa nenhuma esquerda da América Latina. A esquerda é o presidente Gabriel Boric, que denunciou a ditadura da Nicarágua. A esquerda é o presidente Gustavo Petro, que pediu à Corte Internacional que se ocupe do caso da Nicarágua.
💥️O que o senhor e os outros opositores esperam do presidente Lula?
💥️Sergio Ramirez – Que dê respaldo moral à democracia da Nicarágua e não a ninguém em particular. Que lute pela democracia. A voz do Brasil é muito importante para a América Latina para a luta pela democracia e contra a ditadura.
💥️O senhor vê esta posição do atual governo como uma contradição em relação ao que o Brasil viveu nos últimos quatro anos, com o governo Bolsonaro?
💥️Sergio Ramirez – Nós vimos com muita esperança o regresso de Lula ao poder porque representa um regresso à democracia, em contraposição a um governo autoritário como o de Bolsonaro. Celebramos esse triunfo da democracia, de Lula. Por isso, é muito desconcertante a sua posição. Tenho esperança de que escutaremos a voz de Lula pronunciando-se sobre o governo da Nicarágua. Sabemos que o país é pequeno e talvez não represente nada para os interesses do Brasil, mas, acima de tudo, este é um assunto de importância moral.
💥️O senhor acha que Lula pode interceder como mediador para o diálogo entre o regime e seus opositores?
💥️Sergio Ramirez – Antes de falar de diálogo, o governo do Brasil deve se pronunciar em respeito à democracia na Nicarágua e à barbárie que significa retirar a cidadania de nicaraguenses que se opõem ao governo. Trata-se de uma medida bárbara e medieval, que está proibida pelas convenções internacionais. É por esse princípio de ética política que o pronunciamento do Brasil deveria começar.
💥️Qual foi a sua reação quando soube que o regime tinha retirado a sua nacionalidade? O que mudou na sua vida desde então?
💥️Sergio Ramirez – Me senti vítima de uma medida arbitrária e ilegal de um governo que não tem legitimidade e que é proibida pela Constituição da Nicarágua. É um ato político que não tem, para mim, nenhuma validade. Por outro lado, me senti muito amparado pelo fato de que países como Espanha, Colômbia e Equador me ofereceram a cidadania.
💥️ Esta é a segunda vez que o senhor enfrenta o exílio. A primeira na ditadura Somoza e agora na de Ortega. Qual é a diferença entre as duas situações?
💥️ Sergio Ramirez – A diferença mais importante é a juventude. Quando Somoza me processou e ordenou minha prisão também por traição à pátria, eu regressei à Nicarágua para me juntar à luta. Não temi a prisão, não temi a morte. Não quero ser retórico, mas neste momento a juventude lhe dá ânimo. Hoje eu não tenho nenhuma participação política. Sou um escritor que critica o que vê, mas não pertenço a nenhum partido, não almejo qualquer liderança política. Estou sendo castigado por ser um escritor e por ser crítico. Aceito o exílio como algo inevitável. Mas tenho muita esperança de que voltarei à Nicarágua.
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