Felipe Miranda: Tesouro indexado zerando suas taxas reais em 3,2,1 ….
Colunista discorre sobre possibilidade cada vez mais remota de juros reais livres de risco
Eu não acredito nessa história de análises isentas. Não há análises isentas. Por mim, baixavam logo uma lei, publicavam no Diário Oficial.
Nem sempre é de propósito. Aliás, na maior parte das vezes, não é. Tentamos ser frios, imparciais e isentos ao fazer nossas avaliações sobre os ativos financeiros. Munidos de um arcabouço pretensamente científico, queremos — aqui excluo aqueles que obedecem a uma agenda oculta — concluir somente a partir da robustez dos dados e dos números. O inferno está cheio de boas intenções.
Desde que o Iluminismo foi cruel com Deus e o eliminou do mapa, estamos, nas brilhantes palavras de André Lara Resende, em busca de algum heroísmo genuíno, de alguma coisa capaz de ocupar a figura anteriormente representada por Ele. Então, escolhemos a ciência — na falta de algo melhor. A tecnologia e o dinheiro são outros fortes candidatos ao cargo.
Mas, por mais que nos esforcemos, estamos carregados de vieses e predisposições imperceptíveis e não deliberadas. Ora, ora, é claro que o próprio analista não percebe isso. Se percebesse, não seriam vieses, mas, sim, uma inclinação estruturada em direção a alguma conclusão. A síntese de fenótipo e genótipo, experiência e carga genética, constitui o analista, sem permitir-lhe escapatória. O quanto somos mesmos livres para concluir e analisar se não controlamos as reações eletroquímicas dentro da nossa cabecinha animal?
Na pseudociência, escolhemos premissas e métodos capazes de referendar uma conclusão já tomada ex-ante. O que seria uma aplicação rigorosa da proposta lógica-dedutiva nada mais é do que uma tautologia — selecionamos um começo já alinhado ao final desejado; chegamos ao mesmo lugar de onde saímos.
O viés de confirmação — a tendência a buscar coisas, dados e argumentos que reforcem convicções prévias — fica ainda mais forte no mundo da Netflix, da Amazon e dos robozinhos que perseguem nossas preferências individuais. Cada vez mais, vamos sendo expostos somente àquilo que já gostávamos antes, sem entrar em contato com o contraditório. Se a tese nem sequer encontra sua antítese, estamos condenados a ficar estacionados no mesmo lugar, incapazes de evoluir a uma nova síntese, superior à primeira. É o nosso próprio fim da história, em nível individual.
Sabe, eu sou um cara de Bolsa. Nascido e criado no ambiente de ações. Isso me caracteriza, é da minha essência. Então, por mais que tenha evoluído no tempo para outros mercados (a própria Empiricus nasce como research focado em renda variável e depois se estende para uma casa multimercado), as raízes estão no subsolo da Bovespa. Ainda não consegui fugir de mim mesmo. As almas têm seus próprios ancestrais. E eles são bastante vingativos. Rebelar-se contra a própria alma desperta os mais cruéis processos de vendeta.
Portanto, esteja ciente disso. Cada linha aqui escrita carrega, inconscientemente, um viés nessa direção. E cada linha que você ler fora daqui sobre finanças também carrega um certo viés, ainda que o enviesado não venha a admitir isso. Pagar de isentão é mais bonitinho, mais politicamente correto e mais perigoso também. Conhecer as próprias fraquezas é o primeiro passo para domá-las.
Todo esse preâmbulo para fazer uma defesa da… renda fixa! Mais especificamente, dos títulos soberanos brasileiros de prazo longo, aqueles cujos juros reais estão em torno de 3,70 por cento ao ano.
Falo isso com uma dor no coração, mas a verdade é que, para mim, as NTN-Bs 2050 (Tesouro Indexado), mesmo depois da porrada giga neste ano, ainda podem oferecer retorno de Bolsa com segurança de renda fixa (não confundir risco com volatilidade; essa cabrita pula para cima e para baixo feito louca, o que não significa necessariamente que tem risco proporcional ao tamanho de seus pulos).
Esta é uma semana importante para sinalização das taxas de juro em âmbito global, com o famigerado simpósio de Jackson Hole, ambiente apropriado para transmissão de diretrizes de política monetária. Depois de discursos mais duros em suas últimas manifestações oficiais, rigorosamente alinhados ao que apontamos aqui como um “hawkish cut”, estaria Jerome Powell agora preparando uma sinalização de outros cortes na taxa básica de juro norte-americana?
Para mim, a grande questão do mundo hoje se refere às taxas de juro de mercado nos países desenvolvidos, muitas delas zeradas ou até mesmo negativas. Seriam os juros negativos uma aberração momentânea (e, portanto, passaríamos logo por um grande reboot do mercado financeiro global, com sangria generalizada) ou essa seria uma tendência estrutural, característica normal dos novos tempos?
Não há resposta fácil para uma pergunta de 14 trilhões de dólares — esse é o montante hoje negociando a juros negativos. Está lá em Eclesiastes: “visto que ninguém conhece o futuro, quem poderá dizer o que vai acontecer?”.
Vamos pensar friamente. Digo, de forma intuitiva, sem precisar recorrer a conceitos estéreis de economia. A princípio, parece natural imaginar que, para se emprestar dinheiro, uma pessoa exigiria taxas de juro positivas.
Na teoria econômica tradicional, normalmente assume-se que os indivíduos atribuem maior valor para o consumo hoje do que para o consumo amanhã. Há uma certa impaciência intertemporal. Assim, as pessoas demandariam uma recompensa financeira (juros positivos) para postergar seu consumo e poupar para o futuro.
Se você nem sabe se vai estar vivo amanhã, ou se vai chegar à aposentadoria ou, ainda, se luta por condições básicas de sobrevivência, parece fazer todo o sentido. Difícil discordar.
Agora, deixe-me oferecer uma possível outra perspectiva.
As taxas de juro de equilíbrio no longo prazo se formam no mercado de fundos emprestáveis, conforme formalizado por Knut Wicksell. A oferta de fundos emprestáveis (poupança) é positivamente inclinada — ou seja, quanto maior a taxa de juro, mais disposto a poupar você vai estar. Já a demanda por fundos emprestáveis (investimento) é negativamente inclinada — quanto maior a taxa de juro, menor disposição para se tomar dinheiro emprestado. Tenhamos esse instrumental em mãos.
Há algo acontecendo para derrubar as taxas de juro de equilíbrio de longo prazo? Ou seja, que tenha mexido com o equilíbrio estrutural do juro no mundo?
Entendo que sim. Basicamente, falo de demografia e tecnologia, que são, claro, elementos estruturais e irreversíveis. Mais até do que isso. Esses elementos devem se aprofundar com a passagem do tempo. O mundo vai ficar cada vez mais velho e tecnológico.
O aumento da expectativa de vida aumenta a taxa de poupança — se você vai viver mais, inclusive por um bom tempo sem que possa ser muito produtivo, é natural se dispor a poupar mais, mesmo que seja apenas para aposentadoria. Ou seja, temos aqui um aumento da taxa de poupança, que derruba as taxas de juro de equilíbrio.
Ao mesmo tempo, a chegada de novas tecnologias permite uma redução da necessidade de capital — pode se alcançar o mesmo resultado a partir de um menor investimento, dado que a tecnologia traz eficiência na alocação de capital. Aqui, portanto, retraímos a demanda por fundos emprestáveis, tornando a taxa de juro natural cada vez mais baixa.
E, conforme o mundo vai ficando mais velho e mais tecnológico, o processo se aprofunda. Não tem volta. Falamos aqui de pontos estruturais, não apenas de uma conjuntura.
Desafiando a intuição imediata e mais superficial sobre a necessidade de juros positivos por conta da preferência intertemporal por consumo hoje frente ao consumo amanhã, será mesmo tão contraintuitivo imaginar que, num mundo em que pessoas vivem muito tempo depois de aposentadas e já têm (falo aqui dos países desenvolvidos) suas necessidades básicas e imediatas atendidas, atribuem o mesmo valor para o consumo hoje e amanhã? Ou até mesmo preferem consumir mais no futuro a consumir hoje, guardando recursos para o momento de sua velhice?
Além das questões estruturais, há outras conjunturais advogando em favor de juros menores nos EUA.
O último relatório de emprego, bem como a revisão de Employment Reports anteriores, mostrou que a desaceleração da atividade manufatureira, tanto global quanto nos EUA, começou a afetar o mercado de trabalho norte-americano. A média líquida de seis meses para a criação de postos de trabalho caiu de 225 mil para 140 mil por mês neste ano, enquanto as horas agregadas de trabalho estão agora contraindo numa média de seis meses anualizadas — de acordo com a Pimco, isso dificilmente acontece fora de uma recessão. Com a moderação do mercado de trabalho, a tendência é de que a população adote postura mais cautelosa e aumente as taxas de poupança, mais uma vez atuando em prol da queda das taxas de juros.
Em paralelo, a guerra comercial entre EUA e China retira visibilidade dos empresários e torna as coisas um pouco mais bagunçadas. Isso deve postergar investimentos e diminuir a demanda por fundos emprestáveis (juros para baixo de novo).
Por fim, mediante a essas mudanças estruturais na taxa natural de juro, talvez ainda não devidamente dimensionadas pelo Fed, existe um risco de que o banco central norte-americano, ainda que tenha cortado a Fed Funds Rate, esteja, na verdade, promovendo um aperto nas condições monetárias, posto que a circunstância possivelmente exigisse um juro ainda menor.
Resumo da história: se vamos penetrar mais profundamente no ambiente do juro negativo nos países desenvolvidos, esse juro real de 3,7 por cento da NTN-B 2050 pode ser simplesmente uma aberração. Se o argumento aqui construído for correto (só o tempo dirá), a maior porrada dos mercados será um ativo de renda fixa.
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