Felipe Miranda: Como adaptar seus investimentos à guerra comercial?
Colunista discorre sobre relação entre risco e retorno nos investimentos e alocação eficaz (Imagem: Empiricus Research)
“Algumas pessoas pensam equivocadamente que a seleção natural significa ‘sobrevivência dos perfeitamente adaptados’. Darwin nunca usou essa frase (ela foi cunhada em 1864 por Herbert Spencer), tampouco poderia tê-la usado, porque a seleção natural é melhor descrita pela expressão ‘sobrevivência dos mais adaptados em relação a outros’.
A seleção natural não produz a perfeição; ela apenas elimina do jogo aqueles suficientemente azarados a ponto de não serem tão adaptados quanto os demais.”
Esse é um trecho do livro “The Story of the Human Body”, de Daniel Lieberman, da universidade de Harvard. A tradução está ruim, eu sei. Não há em português — ou, ao menos, eu não consegui encontrar — similaridade perfeita para descrever com a precisão e a facilidade do inglês a diferença entre “survival of the fittest” e “survival of the fitter”.
Tomo emprestada a dinâmica darwinista, no livro empregada para a necessidade de se cuidar do próprio corpo, para empregá-la ao contexto dos investimentos.
Primeiro porque, como leitor de Gerd Gigerenzer, gosto sempre de lembrar que a única definição possível para racionalidade se liga ao viés evolucionário e à sobrevivência. Isso fere de morte a proposta típica dos economistas, em que somos máquinas perfeitas de cálculo de probabilidade e de processamento/armazenamento de informação.
E fere também algumas das ideias das Finanças Comportamentais, incapazes de perceber, por exemplo, como é perfeitamente racional sermos avessos ao risco diante de uma situação boa e amantes do risco em uma situação ruim — se você está com câncer terminal, faz todo sentido participar de um novo tipo de tratamento que pode causar importantes efeitos colaterais; já se está bastante saudável, dificilmente vai topar igual procedimento.
Além disso, porque vejo com certa frequência tentativas de investidores tentando “os mais adaptados entre todos”, aqueles com o melhor portfólio do mercado, que mais vai subir pelos próximos meses e anos. “Qual é a melhor ação para comprar?” “Qual é o ativo perfeito?” “Qual é a estratégia ótima?”
Na minha visão, um dos pontos centrais a se entender sobre gestão de patrimônio é que não há certo ou errado nesse jogo. Ou melhor: talvez até haja algumas coisas claramente erradas. Mas certo mesmo, no sentido de uma decisão perfeita, ótima, maximizadora, não existe. Estamos sempre num ambiente de escolha sob incerteza, tendo de optar por qual lugar estaremos no triângulo cujas três pontas são risco, retorno e liquidez.
Esse é um dos trilemas clássicos da Economia, um dos trade-offs mais elementares. Se você quer um pouco mais de retorno, vai incorrer em mais risco. Se quer mais segurança, vai abrir mão de retorno.
Deixe-me tentar explicar o tamanho do problema de outra forma. Você está montando sua carteira hoje. Se você é como eu e não é algum tipo de místico capaz de enxergar o futuro, pensa nas mais variadas possibilidades de cenário à frente. Toma uma decisão prática do que comprar e vender hoje, sendo que só vai saber os resultados no futuro.
Tudo que você sabe agora é que, com alguma probabilidade, por menor que seja, todas as opções de cenário levantadas na sua cabeça podem acontecer. Então, ponderando pelas probabilidades, todos esses cenários precisam, em maior ou menor grau, estar representados na sua alocação atual.
A não ser que você seja louco ou irresponsável, não vai para uma aposta do tipo “all-in”, em que se posiciona apenas para um dos cenários ventilados por você mesmo.
Você pode até ter um cenário de maior convicção, mas não há garantia nenhuma de que ele será materializado. Acreditar que você pode, ex-ante, determinar qual das possibilidades vai ser concretizada à frente é de uma arrogância atroz.
E como diria Adam Grant, minha nova equação favorita está aqui: arrogância = ignorância + convicção.
Então, chegamos necessariamente a uma decisão subótima e não maximizadora, por mera construção lógica. Você vai montar seu portfólio para estar preparado para todos os cenários possíveis à frente (já que não sabe qual será, de fato, o futuro).
Contudo, nós já sabemos, de cara, que apenas um dos cenários vai ser tangibilizado à frente. Você precisa estar pronto para todas as possibilidades, mesmo sabendo que apenas uma delas vai se tornar real. Percebe o problema? Não há, nem pode haver match perfeito.
Isso só vai acontecer se você tiver montado seu portfólio para contemplar apenas um cenário possível à frente. Contudo, aquilo foi somente irresponsabilidade. A história não conta o que poderia ter sido. Seleciona vencedores e vencidos aleatoriamente.
Os líderes dos rankings são apenas aqueles que se alavancaram ou se concentraram num único cenário e, por influência da sorte, viram seu cenário projetado ex-ante sair como concreto ao final do processo. Mas poderia ter sido qualquer outro, entende?
Num portfólio para qualquer cenário, ou naquilo que Ray Dalio chama de All Weather Portfolio, necessariamente teremos coisas redundantes, aparentemente não eficientes. Isso porque queremos — e precisamos — estar preparados para as mais diversas possibilidades.
O sujeito que aparece como líder do ranking, cuja aparência é de estar “perfeitamente adaptado”, estava preparado para aquele cenário que se materializou.
Se você vai viajar e leva apenas roupa de calor, tem a vantagem de carregar menos peso e fazer uma travessia mais confortável. Se, de fato, só fizer calor, ótimo para você, o gênio da tal viagem, candidato a nova Maju Coutinho.
Agora, e se fizer frio e chover? Não era melhor ter levado aquele seu coletinho favorito North Face e guarda-chuva, ainda que ocupassem um lugar relevante na mala?
Há duas ideias aqui, que podem até ser vistas como a mesma para falar a real. Certamente, tratam do mesmo tema: a guerra comercial e seus impactos sobre os mercados.
Essa é a grande questão da semana — hoje mesmo, as Bolsas estão em queda diante de notícias de que a China não estaria disposta a um acordo amplo com os EUA.
De acordo com a imprensa, os chineses querem excluir da pauta a política industrial e subsídios governamentais. Supostamente, as negociações entre os dois países serão retomadas de maneira formal na quinta-feira, de tal modo que a semana deve mesmo ser dominada por esse assunto.
Do ponto de vista da racionalidade ecológica de Gerd Gigerenzer, identifico dois cavaleiros de Thanatos marchando de forma acelerada em direção ao precipício. Não parece razoável supor que ambos vão mesmo se jogar lá embaixo e se matar.
O instinto de sobrevivência deve contê-los antes disso. Até lá, porém, haverá muito ruído misturado com sinal, com os dois tentando endurecer as conversas e encontrar uma solução melhor para si.
Do ponto de vista de gestão de recursos, porém, ainda que o cenário acima seja o mais provável, não podemos tomar isso como dado.
Havemos de nos preparar também para o pior. Sem expectativas ingênuas. Estar preparado não significa necessariamente sair ileso, incólume ou até mesmo mais rico. É apenas atravessar a tempestade, preservar capital e se posicionar para, quando for superada a crise, voltar a crescer.
No meio da tempestade, não se pretende passar sequinho e sem amassar o terno de gala. Apenas queremos chegar do outro lado.
Em resumo, o cenário de um acordo, mesmo que restrito, nas negociações entre EUA e China e de diminuição das tensões entre os países parece o mais razoável para o momento.
Sendo esse o maior risco para a economia global, a ideia é de que esse potencial desfecho reduza a probabilidade de uma recessão mundial e mantenha um crescimento, ainda que moderado, da economia norte-americana por todo 2023.
Em sendo assim, volta a prevalecer a história doméstica para os ativos brasileiros. E essa é muito boa. Sendo assim, continuamos bem pesados em Bolsa e juro longo.
Contudo, acreditar num cenário mais provável não significa, sobremaneira, pensar num único cenário possível. Reconhecendo a possibilidade de conclusão menos favorável nas negociações entre EUA e China, mantemos proteção em dólar e ouro.
Claro que, num momento subsequente, uma das duas hipóteses vai se mostrar errada. Ou teremos um desfecho mais positivo ou mais negativo para a guerra comercial.
Se for mais positivo, aqueles que se concentrarão em ativos de risco vão ser percebidos como “perfeitamente adaptados”.
Se for mais negativo, esses serão comidos pela seleção natural. Nós não podemos nos dar ao luxo de incorrer na chance de sermos devorados por predadores. Nas palavras do evolucionista Warren Buffett, “para ter sucesso, primeiro você precisa sobreviver”.
Ou, como diria Charles Darwin: “A ignorância gera mais frequentemente confiança do que o conhecimento. São os que sabem pouco, e não aqueles que sabem muito, que afirmam de uma forma tão categórica que este ou aquele problema nunca será resolvido pela ciência”.
O perfeitamente adaptado hoje, aquele com o melhor retorno possível e que chutou ex-ante o exato cenário que iria se materializar à frente, será a presa de amanhã.
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