Felipe Miranda: Brasileiro médio, juro mínimo, hábitos novos
Colunista discorre sobre novo ambiente de investimentos do Brasil com fim da renda fixa (Imagem: Empiricus Research)
Minha mãe votou no Bolsonaro. Ela não gosta do Bolsonaro. Gosta menos ainda do PT. Ela elogia bastante a plataforma de reformas do governo. “Paulo Guedes é mineiro, né, filho? E mineiro você sabe…” Fica preocupada quando sai alguma notícia sobre uma eventual privatização da Cemig.
“Ah, vai acabar sobrando pra minha sobrinha… sempre tem corte…” Ela também gostou da história de poder ter conta em dólares no Brasil. “Vai ficar mais fácil de viajar, hein, Lipe? Será que vai ser antes da gente ir pra Disney? Tomara. Tô muito animada… Acho que João vai ficar tão feliz…” Quase perde os cabelos quando sai notícia de perda de estabilidade do emprego no setor público.
“Onde já se viu isso? A pessoa conquistou aquela segurança. Minhas primas já estão preocupadas. A Deoclécia está sem dormir, coitada; tem três filhas.” Fala super bem dos cortes de juro pelo Banco Central, e reclama do rendimento baixo do seu fundo DI.
Pedir coerência já é demais. Todos queremos o ajuste fiscal e uma agenda liberal, contanto, claro, que nosso privilégio (ou de nosso entorno) seja mantido. Acho que mamãe não se dá conta disso, claro. As ambivalências convivem dentro da gente normalmente sem dar conta mesmo.
Ela não entende muito de finanças. Quer dizer, depois de tudo que ela passou e sem nunca ter devido um real pra ninguém ou atrasado um boleto, acho que entende, sim. Só não sabe ou não consegue formalizar. Intuição é aquele conhecimento que fica escondido lá atrás do nosso cérebro.
Também aqui acho que a gente não dá conta dele. Mamãe tem experiência em falências familiares. Só lá em casa foram quatro. Uma pior do que a outra. Aliás, talvez essa seja uma importante lição sobre falências familiares: a seguinte costuma ser pior do que a anterior.
Se você já quebrou uma vez ou presenciou uma falência próxima, não comete os mesmos erros do passado. Lá em casa, nós insistimos, “hat-trick”, e deu no que deu. Olhando agora, parece que deu certo, mas, nossa, foi sofrido pra caramba… e o papai não pôde ver. A virada chegou tarde demais. Uma pena.
Dada a montanha-russa patrimonial do clã, mamãe tem certo desgosto pelas ações. Ah, eu sei. Você tem razão. Eu deveria ter mais paciência — todo mundo adora falar isso pra mim. Ok, ok, mas já tentei. Várias vezes. Falei e falei que o papai fazia algo muito diferente, que trading alavancado é completamente distinto de value ysoke focado em longo prazo. Não adianta. Ela tacou um rótulo no mercado de ações e está duro para tirar. Teimoooosa — já viu uma mulher mineira? Jesus. Você não sabe o que é isso na vida de um cidadão de bem. Agora imagine a mãe e a esposa nessa teimosia braba. “Teimosia, não. É personalidade forte…”
Então, quando a mamãe pergunta onde está investido nosso patrimônio, eu costumo dar uma pequena tergiversada. Nada muito relevante, não. Eu mudo só uma coisinha ou outra. Não é que eu minta. Só omito detalhes. Falo que tenho 4% em ações. Qual o problema? É só um zero no final. O que isso muda? Por que eu tenho que redigir tudo, falar 40? Acho tão desnecessário…
Mas sabe que agora as coisas estão mudando? A gente tem uma conta conjunta no private banking do Itaú. Ok, pausa para o recebimento das pedras. Casa de ferreiro, espeto de pau. Desculpe por isso. Seguimos. Tem uma parte legal dessa história. Ela recebe os relatórios do research do Itaú. Ontem, recebeu a projeção de taxa Selic a 4,0% em 2023. Ela se assustou. Ligou pra mim e tudo.
“Filho, não quero incomodar, mas…”
“Mãe, você não incomoda… pode falar.”
Ela já estava preocupada com o dinheiro rendendo menos em suas aplicações pós-fixadas. Somou A com B e percebeu que a coisa vai piorar.
No mesmo dia em que recebeu o tal relatório de atualização macro, recebeu também a abordagem do nosso banker. Eu gosto dele, deixo claro. O sujeito mandou mensagem no WhatsApp (Zap is the new call center) para oferecer uma operação de crédito estruturado, pagando IPCA mais alguma coisa. Ela, que nunca se interessa por ações, se empolgou com a operação sugerida e me pediu para participarmos da emissão.
Não tenho nada contra essa emissão em particular. Ao contrário, pra ser sincero, gosto dela. Possível, talvez pudesse dizer provável, que aloquemos alguns caraminguás nessa história — dinheiro pouco a gente tem muito. Mas essa abordagem reflete uma dinâmica perversa na indústria de investimentos hoje no Brasil.
Deixe-me tentar ser claro sobre meu ponto.
Minha mãe não entende absolutamente nada sobre crédito privado. Aliás, quem entende, de fato, sobre crédito privado ou operações estruturadas no Brasil? Sejamos sinceros sobre isso. Mas ela consegue entender o perfil de retorno dessa operação.
“A senhora vai ganhar IPCA mais alguma coisa. Sendo que essa alguma coisa é mais do que paga o título público equivalente.” Como aquilo não tem volatilidade, passa a falsa sensação de garantido, sem risco. Então, mesmo não entendendo nada sobre o que está comprando, ela compreende o que vai ganhar (ainda que não compreenda a matriz de riscos envolvida).
E, pra ela, basta. Se a oferta ainda vem temperada com a retórica de isenção de IR, mais fácil ainda para o vendedor. É como tirar doce (no caso, dinheiro) da boca de uma criança.
Agora compare isso com o caso das ações. Se o banker ligar para a minha mãe para oferecer a ação de uma determinada empresa, ela também não vai entender o produto em si. Fora das companhias cujas marcas são conhecidas (ela adora a Natura, por exemplo; parece haver algo mágico naquele sabonete de erva doce), ela provavelmente não vai saber que aquela ação representa uma pedaço de uma firma, que atua no setor tal, com essa vantagem competitiva e aqueles desafios operacionais e estratégicos.
Até aí, estamos parecidos com o caso da oferta de crédito privado, que o investidor-alvo-potencial também não compreende. Contudo, se no caso da operação estruturada supracitada o banker poderia dizer que o retorno seria “IPCA mais alguma coisa acima do retorno da NTN-B”, agora não gozamos mais dessa prerrogativa.
Se, na situação anterior, era muito simples para a minha mãe entender o retorno potencial de seu investimento, no caso das ações isso é perdido. Não tem como o investidor falar: “A ação da Petrobras vai pagar IPCA mais alguma coisa…”.
Então, sem entender a matriz de retorno potencial das ações e, supostamente, compreendendo para o caso do crédito privado, me parece natural imaginar que a opção pela “renda fixa” em detrimento da “renda variável” será o caminho, ainda que não se tenha a mínima ideia, em ambos os casos, de onde está, de fato, seu dinheiro.
Ela não entende igualzinho de crédito privado e de ações — talvez seja até pior para o primeiro caso. Mas não importa, porque o canto da sereia dos retornos aparentemente garantidos e sem volatilidade das emissões de renda fixa é muito encantador.
Qual o resultado? Uma bolha no mercado de crédito privado brasileiro, com spreads muito comprimidos para o investidor final e um estruturador/distribuidor que cobra taxas nababescas porque não há transparência nem concorrência nesse segmento para o investidor pessoa física.
E como ela está desesperada por sair do CDI e quer qualquer pequeno delta sobre esse benchmark, supostamente garantido e sem risco, a bicicleta continua a girar. A música continua tocando. Até o momento em que ela para.
O Brasil está mudando. Todos nós precisaremos mudar também. Qualquer mudança nos coloca fora da zona de conforto. No final, isso é bom. Mas não adianta tentar encontrar atalhos. Não há atalhos. A frase típica para isso talvez fosse: “Se você quer mais retorno, vai ter de correr mais risco”.
Eu não acho que ela seja precisa para o momento. Eu penso que, se você quiser mais retornos, vai ter de incorrer em mais volatilidade — em particular, no mercado de ações. E ele, na minha visão, hoje tem, no geral, menos risco do que as deturpadas operações do mercado de crédito privado brasileiro.
Há, claro, exceções para comprovar a regra. Mas elas são… bem… exceções.
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