Felipe Miranda: Precisamos falar sobre a caixa-preta dos IPOs
“De forma sintética, se você participar de todos os IPOs mundo afora ou no seu país preferido e carregar as ações por alguns anos, vai perder para a média do mercado” diz o colunista.
“Eu tinha vergonha de dizer à minha mãe que trabalhava no mercado financeiro. Eu preferia dizer que tocava piano num bordel.”
(Autor desconhecido)
IPO é um bicho estranho.
A prescrição clássica e politicamente correta das finanças é sugerir ao investidor um horizonte de longo prazo. Concordo com ela. Não porque não gostaria de ganhar dinheiro no curto prazo. Prefiro ficar rico hoje a me endinheirar amanhã. O problema é que é impossível, dada a aleatoriedade do processo de um dia para o outro. Então, só nos restam disciplina e paciência, como uma espécie de troféu de consolação.
Mas, no IPO, a coisa é diferente. A literatura acadêmica possui farta evidência de que, na média, operações de abertura de capital rendem menos do que os índices de ações. O estudo seminal na área é “The Long-Run Performance of Initial Public Offerings”, de Jay Ritter. O próprio Ritter atualiza periodicamente o trabalho original, com conclusões semelhantes. Vários outros artigos replicaram a abordagem mundo afora, chegando aos mesmos resultados. Nós mesmos rodamos o procedimento para o Brasil e o publicamos no Palavra do Estrategista. Deu a mesma coisa.
De forma sintética, se você participar de todos os IPOs mundo afora ou no seu país preferido e carregar as ações por alguns anos, vai perder para a média do mercado.
Em contrapartida, também há suficiente literatura acadêmica apontando o fenômeno de underpricing em IPOs, definido como uma alta sistemática, persistente e estatisticamente superior à média no mercado no primeiro dia de negociação. Eu e o Rodolfo já escrevemos artigo para o caso brasileiro com iguais conclusões.
Pragmaticamente, se você comprar todos os IPOs e vendê-los no leilão de fechamento do pregão de estreia, você tende a ganhar dinheiro. Faz parte da festa.
Nem quero aqui entrar nas potenciais variáveis explicativas para cada um dos fenômenos. São apenas observações objetivas de como a coisa tende a ir mal no longo prazo e bem no curto.
Nada disso é novidade. Meu mais recente receio, porém, é que, com essa história de preterir a alocação ao varejo cuja opção é pelo não lock-up, ou seja, aquele impedido de vender no primeiro dia e obrigado a carregar por mais tempo, ninguém está ganhando dinheiro de verdade com aberturas de capital no Brasil, com exceção de um seleto grupo: os amigos do rei. Como não moramos em Pasárgada, fico preocupado.
Se você tem altos fees e baixa transparência, o terreno é fértil para a falta de isonomia e repartições pouco afeitas à equidade. O investidor de varejo tende a se achar preterido, como se esse fosse um jogo em que só e todos os institucionais ganhassem.
O buraco é mais embaixo. Explico como a banda toca na prática. Começo por um exemplo recente.
Na semana passada, o IPO da Smartfit chamou atenção. A ação subiu 35% no primeiro dia — com os devidos méritos. Fica aqui registrada mais uma vez a admiração pela empresa e pelo Edgard em particular. A questão é outra.
Foi um dia, no geral, fraco de mercado. Algumas gestoras de ações viram a cota de seu fundo subir quase 2%. Por quê? Basicamente, porque mantinham proximidade e relacionamento institucional com o banco coordenador da oferta, que fez uma alocação pesada no IPO para essas casas amigas. Pode parecer pouco, mas subir 2% num pregão em que todo mundo vai mal ajuda a definir trajetórias.
Não é um caso isolado. O exemplo da Smartfit é só uma ilustração de uma dinâmica corriqueira, disseminada e, ainda mais curioso, aceita como normal no mercado financeiro. Como há enorme arbitrariedade no processo e o banco coordenador aloca com quem quiser, ficamos com dois grupos distintos em IPOs bastante disputados: aqueles que operam muito e geram muita corretagem, trazem deals para o banco, têm relações pessoais com a tchurminha e, às vezes, salvam os bancos de outras operações ruins (mais sobre isso no parágrafo a seguir) acabam muito alocados; os demais, levam quase nada.
A contrapartida de ser muito alocado é ter uma obrigação, às vezes tácita, às vezes um pouco mais explícita, de ajudar a viabilizar um outro IPO meio micado, para salvar o fee gordo do banco amigão. E, então, você vê aquela empresa que quase não tem receita sendo listada na Bolsa por um valuation impensável. Você vai tentar entender a aberração e descobre um cheque voando vindo da turma do Leblon de R$ 100 milhões. Como as gestoras têm, sei lá, R$ 10 bilhões de PL, aquilo pesa pouco. Começa o papo de que o smart money carioca está comprando, atrai um segundo time para a operação, bingo! O IPO sai, o banco fica feliz, a empresa acaba capitalizada (e consegue seu turnaround e plano de crescimento, para provar a reflexividade do Soros), a gestora faz a moral com o banco e se candidata para o próximo IPO quente.
Consigo entender o fenômeno. A vida é meio assim, de relações pessoais e respostas a incentivos. Também não tenho simpatia pela figura da freira no meretrício. Mas, objetivamente, essa não me parece uma prática alinhada a um mercado de capitais isonômico, transparente e com princípios elevados de ESG, que, aliás, são ótimos para sair em capa de revista, mas muito menos praticados nos bastidores. O sol será sempre o melhor detergente. Talvez tenha chegado a hora de darmos mais transparência aos próximos de alocação em IPOs.
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