2012. Só um bebedor de vodka escreveria Guerra e Paz

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Lviv, Kiev, Kharkhiv, Donetsk... recordações da paz em tempo de guerra. Imagens dos dias felizes em que os ucrânianos beberam a alegria de golada até ao fim de todas as garrafas de vodka.

Falo da paz no tempo da guerra. Falo do sol por entre a chuva da metralha. Em Junho de 2012, a Ucrânia vivia a alegria do seu Europeu. E eu a alegria de andar a correr de um ponto para o outro do país com aquela vontade irresistível de ver a vida e de contá-la páginas a fio, jornal a jornal.  No dia 27 Junho cheguei a Donetsk para ver o Portugal-Espanha. Saí do comboio noturno de Kiev mecanizado e duro como era, nesse dia, se o Torga me autoriza.

Queria ser alguém que se deitasse no banco mais comprido que vagasse e pudesse dormir. E pude. Gosto de bancos de jardim. Quando era rapaz e viajava pelo mundo de comboio e de autocarro, os bancos de jardim eram camas sibaríticas, plenas de ritmos, imagens e emoções. Nessa manhã de Donetsk adormeci ao sol e o sol de Junho é violento por esses lados do planeta. Acordei em fogo pela cara, pelo pescoço. Inchado, vermelho, mal conseguindo abrir os olhos. Nem Hum-Pá-Pá, o pele-vermelha, conseguiria ser mais vermelho.

Donetsk seria o Ponto do Não Retorno. Antes houvera Lviv e Kharkhiv e Kiev. As florestas de bétulas e um odor amolecido a malvasia. Em Lviv eu estava em casa de Lianka. Pequena casa, mulher e marido grandes, apertados como sardinhas. Ele saía para conduzir um camião e ela sentava-se na dubadoira do crochet com a sua cara de maçã camoesa. E dizia: “A cidade está cheia de portugueses”. Em O Capitão e o Inimigo, de Graham Greene, numa aula de geografia, pergunta o jovem ao tutor: “E Portugal? Como é Portugal?” Ao que o professor responde: “Uma aglomeração de sardinhas!”. Nesse Junho de paz, os portugueses invadiram Lviv parecendo sardinhas em lata. Vendo bem não foi bem uma invasão. Foi mais uma instalação. Como a minha em casa de Lianka, cama, quarto de banho privativo, acesso à internet. O que precisava para trabalhar.  

Os portugueses são muito maus a invadirem mas muito bons a instalarem-se. Tomaram conta do centro da cidade. Pela Halytska Vulitsa, onde só se marchava a pé e se sorviam cervejas nas esplanadas, havia alguns cachecóis verdes e vermelhos: a maior parte deles envolvendo cachaços ucranianos. Estavam longe de adivinhar que haveriam de ser invadidos vinte anos depois.

Alemães também eram muitos. E com esses já é preciso cuidado com as palavras. Os alemães invadem mesmo: para eles invadir é um hobby. Não há quase dia em que não invadam algo. Três alemães ruidosos na Praça Rynok e receei que daí a meia hora já estivessem às portas de Moscovo. Teria sido de uma ironia suprema. 

Em Kharkhiv. A cerveja Baltika não é má, e era a mais fresca que se arranjava. Talvez ainda se arranje neste tempo do qual a morte tomou conta. Que será feito do homem que tocava alaúde pela Svobody Prospect e pela Kraviska Vulitsa. Era bom estar sentado e ver passar o mundo. E escrever quem passa e o que se passa.

Lorca: “Um poder misterioso que todos sentem e nenhum filósofo explica”. Era o duende e a sua teoria. Quem tinha duende era a menina loirinha que tocava violino. Sons de Piazzolla. Nela, o duende não estava na garganta mas subia-lhe por dentro a partir da planta dos pés. Ah! O pé de Juliana, no Primo Basílio: “É bonito! Não vai outro ao Passeio!” Era o Passeio Público.

A menina tocou O Sole Mio. E o sol pôs-se, obediente. O Principezinho teimava: “Um dia vi o pôr do Sol quarenta e três vezes”. E acrescentava: “Sabes?, quando se está muito triste gosta-se do pôr do Sol”. E há muita tristeza na Ucrânia. O sol continua posto. E os homens nos seus postos. A rua ia ficando deserta, a menina loirinha cansa-se da música e da falta de moedas. Arruma o violino e talvez volte amanhã. A rua ficou triste sem o violino. 

A menina loira tinha um sorriso melancólico. Talvez não passasse de um produto da minha imaginação. Segui para Kiev. Depois Kharkiv. Gente ainda embriagada da festa da véspera, ou melhor, das festas das vésperas. A mulher gorda de calças de licra passa correndo com um cão obeso na peugada. Corre devagar a rapariga gorda. Para onde corre? Na direcção das seis da manhã que se aproximam ao seu encontro? O cão pára e ela também. Miúdos chutam latas: brincadeiras de pobres. O spleen de Kharkiv. 

 Sou um homem de madrugadas. Ponho madrugadas em todos os meus textos. Vinicius: “De manhã escureço/De dia tardo/De tarde anoiteço/De noite ardo”. O taxista de bigodes farfalhudos conduzia bêbado – violentamente embriagado.

Acelerava ao longo das avenidas ignorando semáforos como se estes fossem todos da mesma cor. Os ocupantes do táxi, por seu lado, iam perdendo a cor. São três horas da manhã e ainda há muito para fazer. Pelo menos é o que se percebe dos grupos de pessoas que vagueiam por todo o lado como fantasmas. A vodka serve de combustível.

Simples ou com mel e canela (madivka). Registo momentos na Polaroid da memória: o jornalista chinês gordo que à minha frente se dedica com chinesa paciência a cortar as unhas e a limpar as cútis com um corta-unhas muito provavelmente comprado numa loja de chineses; o holandês que se sentava na esplanada com uma máscara igual à de Peter Gabriel no Musical Box; a camponesa de faces coradas que vende morangos a copo, tão vermelhos como ela; o velho soldado que exibe na farda puída as medalhas de uma guerra distante.  O bêbado trôpego fazendo equilibrismo na berma do passeio. Rapazes e raparigas gritando “Ukraína!!!”  Pois é: vodka, a vertigem da vodka. A vodka que faz rodar a Terra em volta do Sol. 

Alguém disse um dia que Leão Tolstoi era um grande bebedor de vodka: só um grande bebedor de vodka conseguiria escrever Guerra e Paz – é preciso esquecer muito do início para lembrar o fim.

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