Mais americana que nunca: com a Liberty, F1 faz guinada para os EUA
Não dá para negar. Dirigente histórico da F1, o inglês Bernie Ecclestone foi o responsável pelo crescimento e pela profissionalização da maior categoria do automobilismo. Foi na gestão dele que a modalidade abandonou as garagens sujas e as equipes mambembes para virar um dos esportes que mais movimenta dinheiro no mundo, com boxes impecavelmente limpos e times ultraprofissionais. Entretanto, Ecclestone fracassou em um de seus maiores objetivos: penetrar no cobiçado mercado americano. Pelo contrário: em sua gestão, a F1 protagonizou o vexame de Indianápolis. A corrida de apenas seis carros em 2005 poderia ter causado danos irreversíveis para a imagem da categoria no país. Pois é, poderia.
2 de 9 A vexaminosa largada de apenas seis carros no GP dos EUA de 2005, em Indianápolis — Foto: Christopher Lee/Getty Images
A vexaminosa largada de apenas seis carros no GP dos EUA de 2005, em Indianápolis — Foto: Christopher Lee/Getty Images
A história da Fórmula 1 com os Estados Unidos começaria a mudar no início de 2016. O americano John Malone, sócio majoritário do grupo de comunicação Liberty Media, teve a primeira reunião com Bernie Ecclestone. Em setembro do mesmo ano, a venda estava concretizada: a empresa americana se tornava dona da maior categoria do automobilismo mundial. E em janeiro de 2017, uma decisão que chocou o status quo, mas que não deveria ser surpresa tendo em vista as intenções da Liberty para a F1: a empresa "aposentou" Ecclestone após mais de 40 anos de serviços prestados. Era a deixa para a virada de chave: saía a visão fechada do dirigente octogenário e entrava a visão agressiva dos americanos, que precisavam aproximar a Fórmula 1 de seu público. Sobretudo dos mais jovens, que já não se interessavam por corridas de carros. E, claro, tentar fazer com que a categoria enfim entrasse no cobiçado mercado de entretenimento esportivo dos Estados Unidos.
3 de 9 Charles Leclerc passa em frente às arquibancadas lotadas do Circuito das Americas, em Austin, em 2022 — Foto: Ercore ColomboCharles Leclerc passa em frente às arquibancadas lotadas do Circuito das Americas, em Austin, em 2022 — Foto: Ercore Colombo
A partir de 2017, a Liberty praticamente virou a Fórmula 1 do avesso. Um novo estilo de comunicação nas mídias sociais, mais amigável e aberto, foi adotado. As equipes foram incentivadas a deixarem a clausura e interagirem com seus fãs - virtualmente e também nos autódromos. Uma nova marca foi criada para a categoria, para marcar a nova fase. E, o golpe de mestre: uma série de entretenimento lançada em uma plataforma de streaming para mostrar os bastidores das corridas, das equipes e dos pilotos: (DTS). Mais do que um documentário, é uma das mais engenhosas peças de propaganda e de marketing já desenvolvidas no mundo. O DTS atingiu em cheio o mercado americano, que passou a conhecer as histórias da maior categoria do automobilismo. A abordagem do roteiro dos episódios também ajudou muito nisso, humanizando os personagens, que durante as corridas ficam escondidos dentro dos cockpits, protegidos pelo halo e por seus capacetes. A série fez com que a Fórmula 1 virasse um sucesso nos Estados Unidos, com audiências crescentes na TV e com os pilotos virando convidados frequentes de programas de auditório e , algo inimaginável há alguns anos.
4 de 9 Max Verstappen recebe a bandeirada como primeiro vencedor da história do GP de Miami de F1 — Foto: Mario Renzi/F1 via Getty ImagesMax Verstappen recebe a bandeirada como primeiro vencedor da história do GP de Miami de F1 — Foto: Mario Renzi/F1 via Getty Images
Com o crescente interesse americano, era natural que a Liberty buscasse levar a categoria mais para perto de seu público nos EUA. A empresa já tinha herdado um GP em Austin, no Texas. Nos últimos anos, a corrida bateu recordes seguidos de público presente ao Circuito das Américas - só em 2022 foram 400 mil pessoas durante todo o fim de semana. No ano passado, ela levou o segundo grande prêmio para o país: mais precisamente para Miami Gardens, em um circuito montado ao redor do Hard Rock Stadium, estádio do Miami Dolphins, time da NFL, a liga de futebol americano. Foram mais de 240 mil espectadores no ano de estreia. Em 2023, será a vez do retorno de Las Vegas, em uma corrida noturna em um circuito de rua montado em torno da Strip, a rua mais famosa da cidade, cheia de luxuosos hotéis com cassino. Tem tudo para ser mais um sucesso de marketing para Liberty e a Fórmula 1.
Será apenas a segunda vez na história dos 73 anos da Fórmula 1 que a categoria vai realizar três corridas nos Estados Unidos - a outra foi em 1982 (Long Beach, Detroit e Las Vegas - em um circuito montado no estacionamento do hotel Caesars Palace). Neste ano, teremos Miami, Austin e Las Vegas. E, de quebra, com um piloto americano na pista, coisa que não acontecia há oito anos (desde Alexander Rossi na Marussia): Logan Sargeant será titular da Williams, a pior equipe do ano passado. É um piloto novato, recém-subido da Fórmula 2 e sem grandes resultados na carreira. Mas, ainda assim, é mais um incentivo para o público americano. E tudo indica que a categoria não vai parar por aí: a AlphaTauri tentou trazer Colton Herta, astro da Fórmula Indy, para a temporada 2023, mas esbarrou no regulamento da superlicença. A McLaren, que já tem um braço nos EUA, está procurando pilotos no país - e já tem até alguns astros da Indy sob contrato, com o mexicano Pato O'Ward e o espanhol Alex Palou. Pois é. Para quem acha que a americanização da Fórmula 1 vai parar por aí, sinto informar que é só o começo.
5 de 9 Lewis Hamilton faz exibição no lançamento do GP de Las Vegas para a temporada 2023 — Foto: Getty ImagesLewis Hamilton faz exibição no lançamento do GP de Las Vegas para a temporada 2023 — Foto: Getty Images
E isso necessariamente é algo ruim? É uma grande interrogação. Até agora, a política adotada pela Liberty tem sido muito acertada e feito um mercado que era praticamente não aproveitado crescer a cada ano. A questão agora é traçar o limite desta expansão sem desagradar o público já cativo da Fórmula 1. Não americanizar demais a categoria fazendo com que ela perca suas raízes e, com isso, afaste o público europeu, que é quem sustenta a modalidade durante a maior parte da temporada. Afinal, ela foi criada na Inglaterra e cresceu no Velho Continente. Aceitar o American Way of Life não é algo que os europeus costumam fazer com muita facilidade, ainda mais com um orgulho do continente, tal qual é a F1. A Liberty vai ter de encontrar essa linha tênue. E não vai ser fácil. É tentativa e erro mesmo. Não tem muito jeito.
6 de 9 Americano Logan Sargeant, estreante na Fórmula 2 em 2022, será titular da Williams na F1 em 2023 — Foto: Williams RacingAmericano Logan Sargeant, estreante na Fórmula 2 em 2022, será titular da Williams na F1 em 2023 — Foto: Williams Racing
7 de 9 Max Verstappen comemora a vitória no GP de Miami de 2022 com um capacete de futebol americano — Foto: Mark Thompson/Getty Images
Max Verstappen comemora a vitória no GP de Miami de 2022 com um capacete de futebol americano — Foto: Mark Thompson/Getty Images
Sinceramente, não acho essa guinada para os Estados Unidos algo ruim. Tudo o que foi feito pela Liberty Media até agora agregou muito valor para a categoria. Trouxe público novo e sobretudo jovem, algo que era tido como muito difícil há muitos anos. Não acho que ter pilotos americanos ou três corridas nos EUA seja algo nocivo para a categoria. Principalmente quando são eventos claramente distintos: uma prova clássica, no Circuito das Américas, no Texas; um circuito de rua diurno em Miami; e um show noturno nas ruas de Las Vegas. Fará a categoria ser mais comentada, trará mais lucros. Todo mundo sai ganhando, no fim das contas.
Estou longe de ser o consumidor de automobilismo conservador. Sou bem cabeça aberta para boas ideias. E acho que o pacote americano da Liberty Media tem feito muito bem ao produto Fórmula 1. Fez a categoria crescer e muito. Fico muito mais incomodado com o excesso de corridas, por exemplo, em países do Oriente Médio e seus notórios desrespeitos aos direitos humanos. Temos corridas no Bahrein (que paga pelos testes e pela abertura da temporada), nos Emirados Árabes, na Arábia Saudita e no Catar. O polêmico patrocínio da Saudi Aramco, petrolífera saudita que polui o meio ambiente e também desrespeita direitos humanos. Para mim, isto deveria incomodar muito mais do que meros três Grandes Prêmios nos Estados Unidos. Mas cada um sabe de si, não é mesmo?
8 de 9 Sebastian Vettel e Lewis Hamilton no pódio do GP dos Estados Unidos de 2012, em Austin, no Texas — Foto: Getty ImagesSebastian Vettel e Lewis Hamilton no pódio do GP dos Estados Unidos de 2012, em Austin, no Texas — Foto: Getty Images
9 de 9 Perfil Rafael Lopes — Foto: Editoria de Arte/GloboEsporte.comPerfil Rafael Lopes — Foto: Editoria de Arte/GloboEsporte.com
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