Felipe Miranda: Ecos de 2000, a morte da morte ou apenas do value ysoke?

💥️Por Felipe Miranda, CEO da Empiricus Research

Além de uma música do Reginaldo Rossi (e isso me parece o mais importante!), “A Raposa e as Uvas” é uma fábula de Esopo, depois reescrita por La Fontaine. Uma raposa caminha faminta pela floresta quando avista uvas no topo de uma vinha. Passa horas tentando chegar aos convidativos cachos e, sem sucesso, conclui: essas uvas só podem estar verdes e azedas. Despreza-se aquilo que não se pode ter.

No campo da psicologia, o fenômeno ficou conhecido como “dissonância cognitiva”, depois de sua estruturação por Leon Festinger. Desvirtuam-se argumentos e narrativas atrás de uma suposta coerência de cognições.

Em linguagem de bar, é o famoso “não queria mesmo”, criado como racionalização para justificar algum fracasso.

Warren Buffett passou anos como um cético sobre o setor de tecnologia. Estava fora de seu círculo de competências e, portanto, ia para a pastinha “too hard” (excessivamente complexo). Claro, seus obedientes discípulos metidos a descolados seguiam o mestre dos magos sem entender muito bem a mensagem. Eis que então Apple passou a ser uma das maiores posições de Buffett. Daí foi lá a “nata do value ysoke” estudar esse tipo de coisa. Aconteceu algo parecido com as companhias aéreas – o homem é mais sofisticado e complexo do que consegue se definir; além disso, só os tolos não mudam de opinião. Mas o papo das airlines fica para outro dia.

No Brasil, poucos adentraram, de fato, na profundidade de estudo exigida para esse tipo de reposicionamento. Como de costume, a Dynamo foi uma das primeiras, partindo para comprar Mercado Livre, hoje uma posição também carregada pela turma da Constellation. De cabeça, outro exemplo estaria na compra de Banco Inter pela Atmos.

Como talvez você já saiba a esta altura, as ações das grandes empresas de tecnologia estão caindo destacadamente nos últimos meses. O grupo das FAANGs (Facebook, Amazon, Apple, Netflix e Google) inteiro está em bear market, com quedas superiores a 20 por cento para todas suas ações. Já posso ouvir aqueles que se mantiveram alheios à grande disparada desses papéis nos últimos anos dizendo: “Eu nem queria mesmo”.

Não podemos transformar a análise de ações num exercício de egos. Há algo particularmente preocupante para mim nessa queda do setor de tecnologia e isso merece a devida atenção.

A grande questão, no meu entendimento, é de que não dispomos do instrumental analítico devidamente desenvolvido para avaliarmos o setor de tecnologia. É evidente que há fundos dedicados e pessoas muito sérias debruçadas sobre o segmento. Eu mesmo estou indo para Nova York no começo de dezembro para um curso na Columbia focado só nisso: valuation de tech companies. Mas tudo me parece insuficiente. E, humildemente, sinto que quase posso provar o argumento como um teorema.

Primeiro, porque passamos décadas sob a influência das métricas do value ysoke clássico de Benjamin Graham e Warren Buffett. Fomos treinados feito cães obedientes, decoramos e replicamos aquilo como uma seita beneditina.

Se aplicarmos esse instrumental analítico ao caso das techs, não chegaremos nem perto de conseguir justificar os atuais níveis de preço – note, porém, que foi assim no passado também e quem seguiu por esse caminho perdeu verdadeiras multiplicações, coisa que deixou muita gente rica de fato.

Mas confesso nem ser esse ainda o ponto nevrálgico, na minha visão. Poderíamos desenvolver outro instrumental só para as techs. Mas me parece quase uma impossibilidade lógica fazê-lo.

Vamos do começo. Onde está o grande frenesi tecnológico hoje? No Vale do Silício, certo? Ali está instalada a Singularity University, uma espécie de meca da turminha pseudointelectual que faz curso de três dias na Casa do Saber e viaja para o “Vale” para passar de up to date com tecnologia, sempre vestindo happy socks, claro. Desencana da questão estética. Estamos discutindo ali a era da Singularidade.

Se a turma lá estiver certa, a partir de 2045 ou alguma coisa em torno disso, interromperemos a degeneração celular, tratando o envelhecimento como uma doença qualquer. Será a morte da morte – a não ser, claro, por acidentes e afins. Em paralelo, nosso cérebro estará conectado a um exo-córtex, com capacidade infinita de armazenamento, coleta e processamento de informação. É o fim da espécie humana como a conhecemos, chegamos à era da Singularidade – com um potencial intelectual praticamente infinito, sequer podemos dizer o que será este ser pós-humano.

Deixe-me abordar a questão por outro ângulo, caso ainda não tenha ficado clara a essência da parada. Se estamos no campo da exponencialidade e da disrupção constante, por construção, não podemos saber qual tecnologia vai prosperar, qual vai sofrer disrupção e qual vai causar a disrupção – se soubéssemos, nós mesmos anteciparíamos para hoje a tecnologia vencedora do futuro. É uma tautologia.

Enquanto tentamos brincar de Deus e buscamos novos desafios para a raça humana, como a imortalidade, recorremos a uma cartilha (value ysoke) que prescreve a perseguição por previsibilidade de resultados, sendo que não há mais previsibilidade alguma. Tudo muda muito rápido.

Para se justificar o valuation das empresas de tecnologia, necessariamente precisamos encontrar algum crescimento exponencial de seus lucros – mas a qual futuro nos referimos? Aquele que sempre foi impermeável, opaco e, agora, ganha contornos de completo obscurantismo e de provável mudança completa?

A análise vira uma espécie de “leap of faith”, um salto de fé – nada além disso. Quase como se escolhêssemos, a priori, os vencedores do futuro e, então, partíssemos para uma investigação apenas para justificar as conclusões pré-encontradas, numa aplicação clássica do viés de confirmação.

Pode ser, sim, que as FAANGs continuem liderando a fronteira tecnológica, sigam como grandes monopólios em seus respectivos campos de atuação e entreguem todo o crescimento exponencial embutido em seus respectivos valuations, de tal sorte que a queda recente configure uma oportunidade de compra clássica. Dados, tecnologia, bom management – está tudo ali.

Em contrapartida, tudo muda tão rápido que os monopolistas de hoje podem sofrer uma grande disrupção amanhã. Estamos em mares nunca dantes navegados, usando um instrumental analítico obsoleto e embutindo nos valuations um crescimento vigoroso dos lucros corporativos, sem qualquer garantia que isso, de fato, vá se materializar.

A demanda por seus produtos pode subitamente diminuir, como parece ser o caso do iPhone agora; talvez surja regulação importante para corrigir falhas de mercado, posto que já se admite publicamente que o livre mercado ali não está funcionando; a redução da liquidez global pode afastar a capacidade da turma de tecnologia levantar dinheiro.

Nós não sabemos. Essa é a verdade. E o pior: insistimos em tentar, usando métricas e ferramentas velhas para tratar um novo problema. Como não há nada melhor a se fazer, recorremos àquilo. Perdemos a chave de casa e ficamos procurando apenas no entorno da luz do poste porque é o único lugar iluminado. Não vai dar certo.

Mestre não é quem sempre ensina, mas quem, de repente, aprende. Precisamos de humildade epistemológica neste momento. De reconhecer nossa própria ignorância. De saber que ninguém sabe nada. E de admitir que, ao menos por enquanto, ainda somos apenas seres humanos. Até 2045, há uma longa caminhada. Você precisa chegar até lá vivo.

Sigo confiante na tese do bull market estrutural brasileiro, iniciado em janeiro de 2016. Pondero, no entanto, que o cenário internacional é bastante adverso para ativos de risco em geral – as techs são apenas um exemplo desse fenômeno mais sistêmico. Commodities, criptomoedas, mercados emergentes, todos estão sofrendo com a menor disposição ao risco. Enquanto o gringo não apagar o incêndio que acontece dentro de sua própria casa, não adianta convidá-lo para jantar fora. A Bolsa é o mecanismo de transferir dinheiro dos impacientes para os pacientes. Entre as virtudes verdadeiramente humanas, a paciência é uma das mais importantes.

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