Felipe Miranda: A ausência dos 150 mil tuítes de Bolsonaro se faz muito presente
Segundo colunista, presidente da república precisa parar com ataques à impressa e ao legislativo (Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
O garçom se aproxima da mesa ao fundo e à direita daquele café parisiense onde senta um senhor baixo, de nariz grande e bastante feio. Pergunta o pedido. O cliente, Jean-Paul Sartre, responde: “Quero uma xícara de café com açúcar, mas sem creme”.
O garçom se retira, entra na cozinha e logo volta se desculpando: “Mil perdões, Monsieur Sartre, mas o creme acabou. Pode ser sem leite?”.
A piada original aparece no filme “Ninotchka”, de Ernst Lubitsch. Aqui está adaptada. Ela marca a diferença entre dois tipos de ausência muito bem definidos. A ausência pode ser bastante presente. O nada, o vazio, ganha contornos bastante concretos e materiais diante do que ele pode ter de representação.
Sartre dá dois exemplos para ilustrar o argumento.
Imagine que eu marque um encontro com meu sócio Rodolfo num determinado restaurante hoje às 20 horas. Chego 20 minutos atrasado (o que nunca acontece, imagina) e, um pouco angustiado pela falta de educação, olho em volta procurando atentamente pelo meu companheiro de jantar.
Tudo está perfeito no restaurante. As mesas, a movimentação dos garçons, os quadros coloridos nas paredes, os pratos de comida servidos nas mesas ao lado, as garrafas de vinho exalando especiarias, tabaco e frutas vermelhas. Algo se destaca acima de tudo isso: a ausência de Rodolfo. Nada é mais proeminente e eloquente do que a falta da presença física do meu sócio.
Outro caso: esqueci meu cartão de crédito em casa e agora me preocupo com meu almoço. Terei dinheiro para pagar o rango? Acho que tenho 200 reais na carteira.
Ok, parece bom. Estou tranquilo. Resolvo checar com os próprios olhos e noto que tenho apenas 150 reais comigo. Ora, neste exato instante, o que se faz mais presente não são mais os 150 reais efetivamente constantes na carteira, mas, sim, a ausência dos 50 reais que eu tinha como expectativa para completar os 200.
Para dar os devidos créditos: a ideia de um nada ativo e específico não surge exatamente com Sartre; é um desenvolvimento da fenomenologia de Husserl e da noção de intencionalidade, aqui no sentido dado pelo anglicismo “intend to”. A mente é sempre um “acerca-de”, se inclina a algo, sai de dentro de si, pois a consciência não existe sozinha, para debruçar-se sobre algo. Ela não é nada a não ser sua tendência de apontar ou de se dirigir a coisas.
Essa perspectiva nunca foi tão forte pra mim quanto agora. Nada me parece mais relevante, presente e eloquente do que a ausência dos tuítes beligerantes de Bolsonaro contra o Congresso e a imprensa. De uma forma estranha — neste governo, não poderia ser diferente —, eles parecem ter encontrado um jeito de caminhar com a pauta de reformas. Isso basta para os mercados no curto prazo — assumindo, claro, que não haverá uma hecatombe no exterior.
Há pouco mais de um ano, apresentei a tese do “Segundo Mandato Temer”, resumida no argumento de que as condições materiais estavam postas para a migração do espectro político da esquerda intervencionista para a direita liberal. Independentemente do presidente a ser eleito, haveria uma vitória da agenda, que se colocaria como inexorável pela mera imposição das forças estruturais. Previdência ou morte (registrei antes da revista!). E como vaso ruim não quebra, a gente não vai morrer agora, não.
Bastaria ao novo governo não atrapalhar. Olha, no começo, o Planalto bem que tentou. Esforçou-se bastante para tirar-nos do rumo. Mas parece ter se emendado. Sem criar crises desnecessárias, a coisa caminha. Note que isso não vem somente no pós-manifestações de domingo, nem da votação de ontem no Senado pela aprovação da reforma administrativa, tampouco do pacto dos três Poderes.
Com a devida sensibilidade, pode-se notar uma aproximação do Executivo ao Legislativo e até mesmo a uma parte da imprensa há pouco mais de uma semana, quando o presidente parece ter se aconselhado com a ala militar mais moderada e abrandado o tom.
O Congresso quer a reforma da Previdência, que pode ser inclusive acelerada, conforme cobra publicamente Rodrigo Maia — falem o que quiserem, mas o Congresso sentiu, sim, a pressão das manifestações. O Executivo quer a reforma. A população nunca pareceu aceitar tanto, com parcela relevante inclusive indo às ruas em favor da matéria. E quase toda a mídia também está a favor.
Contrariando as estimativas pasteurizadas dos discursos politicamente corretos, não me surpreenderia inclusive com uma reforma pouquíssimo desidratada, próxima a 1 trilhão de reais e com cerca de 350 votos a favor (pense que a esquerda tem apenas 120 votos; para reforçar a vitória acachapante esperada, considere que partidos como PSB e PDT têm dissidências internas e podem oferecer alguma surpresinha a favor da reforma). Se for isso mesmo, pode ser porrada giga. Além da questão em si, abre caminho para toda uma programação de reformas liberais sucessivas. Daí o crescimento vem.
Finalmente, agora parece que vai. Até quanto? Ora, pegando aquele exemplo de re-rating da Índice, podemos ter cerca de 30 por cento de expansão de múltiplos, mais cerca de 20 por cento de crescimento dos lucros. Próxima parada: 150 mil pontos.
Dois feedbacks rápidos antes de encerrar
1. Sobre o follow-on do BTG, entendo a notícia como positiva em termos líquidos. Pode até gerar algum overhang de curto prazo, claro. Mas o estrutural é muito mais relevante. Vai recomprar EFG e separar para a holding, melhorando ROE consolidado do banco, o que traz re-rating em termos de Preço sobre Valor Patrimonial. Melhora core capital, traz mais liquidez ao ir para 25 por cento de free float e migrar para Nível 2 de governança.
Em paralelo, trouxe Amos Genish para comandar unidade de varejo, claramente indicando foco em tecnologia nessa vertente e maior direcionamento para esse nicho de negócio — seria a antessala do spin-off do Digital e do aqui defendido processo de destravamento de valor? Não sei, mas faria sentido. Também daí podemos ter re-rating, com BTG sendo cada vez mais percebido como um case de tecnologia.
Se a narrativa pegar, os múltiplos são outros. Ah, sim, daqui dois anos Amos pula para um novo galho, lotado de stock options, como costumam fazer os executivos percebidos como heróis pelos empty suits do mercado financeiro (afinal, não foi isso que ele mesmo fez nos últimos anos?), mas até lá temos bastante tempo para ganhar dinheiro com BPAC11.
2. Com MP do Saneamento caducando na próxima segunda-feira, recebi várias dúvidas sobre eventual mudança de opinião sobre os casos de Sanepar e Copasa. Discordo da interpretação mais negativa e tomaria inclusive a queda recente como oportunidade de entrada.
O governo já se comprometeu a enviar projeto de lei e deve endereçar a questão com urgência. No final, entendo que isso acaba com federalização dos marcos regulatórios e outros níveis de preços para o setor, hoje possivelmente o mais barato em Bolsa.
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