Biólogo foi ameaçado de morte por defender mangues no Rio de Janeiro

Instintivamente, o biólogo aponta sua lente para baixo, tirando fotos das lagoas num ponto onde o azul da água se mescla a um verde brilhante. A cor estranha é evidência de altos níveis de cianobactérias que prosperam em material orgânico — neste caso, milhares de litros de esgoto.

Aparentemente despreocupados, jet skis cruzam a mistura tóxica em frente a mansões de estilo ibérico com quadras de tênis e piscinas. Degradada ao longo de décadas de expansão urbana febril, a chamada Veneza Carioca, em seu estado atual, é apenas o sintoma de um problema muito maior.

Uma baía morta

Da cidade partida aos pés do Maciço da Tijuca, passando pelos bairros populares da Baixada Fluminense, até as enseadas de Niterói, a paisagem revela toda a extensão da tragédia: a Baía de Guanabara, porta de entrada histórica para o Rio de Janeiro, é parte de um Patrimônio Mundial da Unesco e um dos ecossistemas costeiros mais poluídos do mundo.

Ao longo de toda a borda oeste da baía, uma lama doente jorra de uma dúzia de canais poluídos. A maré está baixa e do alto avista-se o leito da baía, coberto por uma espessa camada de lodo negro.

Décadas de esgoto sem tratamento produziram sedimentos em alguns lugares com até alguns metros de profundidade. Dos manguezais nativos que cobriram o litoral carioca, restam poucos aqui.

O que existe no entorno do câmpus da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Ilha do Governador se deve, em parte, aos esforços do biólogo Moscatelli para reativar esse ecossistema.

Há décadas, Moscatelli luta para preservar o que resta dos manguezais nativos do Rio. Seu renascimento é mais uma frente na guerra global contra as mudanças climáticas causadas pela espécie humana.

"Quando você sobrevoa os manguezais, você vê eles cheio de lixo", lamenta Moscatelli. "O que eu levo 20 anos [para construir], um cara destrói em uma semana. E não há reação do governo, apesar da lei ser clara na proteção desses ecossistemas."

Sofá descartado no Canal de Fundão, um dos trechos mais poluídos da Baía de Guanabara, próximo ao câmpus da Universidade Federal do Rio de Janeiro.  - Andrew Johnson - Andrew Johnson Botos foram vistos na Baía de Guanabara e em praias do Rio - Divulgação/Instituto Boto Cinza - Divulgação/Instituto Boto Cinza 18 mil litros de esgoto lançados em suas águas a cada segundo. Quase metade de todas as águas residuais na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, com sua população de mais de 13 milhões de habitantes, não é tratada.

Lixo doméstico, resíduos industriais, eletrodomésticos, móveis e até cadáveres podem ser encontrados boiando nas águas turvas da Guanabara — que ainda hoje também se recuperam dos impactos de um derramamento de 1 milhão de litros de petróleo bruto em 2000.

Quase todas praias da Guanabara, tanto no Rio quanto em Niterói, estão impróprias para banho, enquanto um verdadeiro cemitério de navios abandonados despeja quantidades desconhecidas de produtos químicos perigosos na baía.

Os nativos botos-cinza (✅Sotalia guianensis), que decoram o brasão da cidade, praticamente desapareceram. Dos cerca de 400 que ali viviam na década de 1980, estima-se que apenas 30 sobrevivam.

Estima-se que 18 mil litros de esgoto sejam despejados por segundo nas águas da Guanabara.  - Andrew Johnson - Andrew Johnson O biólogo Mario Moscatelli (à dir.) supervisiona o trabalho de um colega durante o replantio de manguezais no Jardim Gramacho, próximo ao lixão desativado. O local é um dos mais poluídos da baía e vive sob impacto de facções criminosas.  - Andrew Johnson - Andrew Johnson Baía Viva, que teve suas origens no ativismo ambiental e democrático durante a ditadura militar.

Em 1984, o Baía Viva foi fundamental na luta para obter o status de proteção para o manguezal original remanescente na Baía de Guanabara, a Área de Proteção Ambiental de Guapimirim, com 13.926 hectares, no extremo nordeste da baía.

É aqui que os últimos botos-cinzas buscam refúgio.

Como líder do Baía Viva, Potiguara faz campanhas públicas há décadas pela justiça ambiental e pelos direitos das comunidades que sofrem as piores consequências de sua destruição.

Local de alimentação e reprodução de peixes e crustáceos, um manguezal saudável como o que antes existia na Guanabara foi o responsável por sustentar inúmeras gerações de pescadores artesanais, desde os primeiros habitantes da região, os indígenas do povo Tupinambá.

Hoje, nem os Tupinambá do Guanabara existem mais e nem os peixes que antes lhes servia de alimento. Em tempos econômicos difíceis, como a recessão de 2014-2018, a pandemia de covid-19 e agora o atual período de estagflação, famílias mais pobres do Rio poderiam fazer da pesca uma fonte de renda.

No entanto, numa trágica ironia, até aqueles que antes eram pescadores hoje são obrigados a catar latas e garrafas do litoral poluído da baía para sobreviver. 💥️Muitos sofrem de efeitos na saúde associados ao contato prolongado com água tóxica, como erupções cutâneas, disenteria e câncer.

Pessoa com problema de pele devido a água poluída da Baía de Guanabara. - Andrew Johnson - Andrew Johnson estudo recente que estima que o custo econômico anual provocado pela poluição da baía, para o estado, é de pelo menos R$ 31 bilhões por ano devido à perda da pesca, somando o peso no sistema de saúde e desvalorização imobiliária.

"Em uma região metropolitana com pobreza muito alta, como a situação das comunidades de pescadores, dois em cada três jovens não trabalham nem estudam", diz Sérgio, "A recuperação ambiental da Baía de Guanabara é importante não só do ponto de vista ecológico, mas também para a saúde pública e para a economia do Rio de Janeiro."

Mesmo enfrentando ameaças e intimidações por seus esforços, o movimento Baía Viva continua apoiando as comunidades pesqueiras na organização da resistência, como a luta pela reparação do desastre do derramamento de óleo da Petrobras em 2000. Décadas depois, os pescadores ainda encontram óleo em suas redes.

pescadores - Andrew Johnson - Andrew Johnson

Uma das promessas do megaevento era a proposta de despoluição do Guanabara e a desativação do lixão do Jardim Gramacho, outrora o maior da América Latina (agora ao lado de um dos projetos de reflorestamento de Moscatelli).

"Eles usaram dinheiro público para financiar grandes empresas privadas a construir novos aterros sanitários, em vez de implementar a coleta seletiva ou o tratamento do chorume", diz o ecologista.

pescadores - Andrew Johnson - Andrew Johnson

Inicialmente, houve resistência dos sindicatos e da sociedade civil, preocupada com a venda massiva de empregos e ativos públicos para o capital estrangeiro. Mas, em meio à pandemia de covid-19, foi aprovada a revisão da lei federal do Marco Legal do Saneamento, permitindo a privatização dos serviços de tratamento de esgoto no Rio de Janeiro.

Em junho de 2023, após décadas de promessas quebradas de limpar a Guanabara, o governo do Rio vendeu um de seus ativos mais lucrativos.

A Cedae foi dividida em quatro blocos e vendida por um total de 22,6 bilhões de reais, pouco mais da metade do valor esperado, por um prazo de 35 anos. O próprio leilão foi financiado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) com recursos públicos, levantando dúvidas sobre sua legalidade. "Isso aconteceu nos primeiros seis meses da pandemia e ninguém podia protestar, ninguém podia reclamar", lamenta o ecologista. "Foi vendido a preço de banana."

A estatal continua no controle da captação de água e tratamento de água potável, mas as partes mais lucrativas da empresa, a distribuição e tratamento de esgoto, agora estão em mãos privadas.

Uma das concessionárias, a Iguá Saneamento, empresa privada de serviços de água e esgoto, pertence a fundos de pensão canadenses, que recentemente foram alvo de críticas públicas naquele país por investimentos antiéticos.

A Cedae era alvo de críticas à sua ineficiência, disfunção e corrupção há muito tempo. Vários projetos de infraestrutura financiados pelos contribuintes caíram em desuso ou foram completamente abandonados.

As novas concessões privadas com fins lucrativos afirmam que sua responsabilidade com os acionistas e suas obrigações contratuais com o estado os obrigará a cumprir, o que é conhecido no jargão empresarial, seus "compromissos ESG" (Ambientais, Sociais e de Governança).

A reorganização corporativa e o influxo de capital estrangeiro já mostrou resultados: em 2022, pela primeira vez em décadas, a Baía de Botafogo, vizinha ao Pão de Açúcar, se tornou segura para banho graças a uma rede de esgoto reformada.

Outras melhorias nas estações de tratamento e linhas coletoras estão em andamento em toda a região metropolitana do Rio.

Mas enquanto as concessionárias prometem tratar 90% de todas as águas residuais até 2033 e investir um total de 30 bilhões de reais ao longo de trinta anos para melhorar o saneamento, menos de 6% desses fundos são reservados para as cerca de mil favelas cariocas.

Somando 1,5 milhão de pessoas, cerca de um quarto da população da cidade vive em comunidades com pouco acesso a serviços públicos como água e saneamento.

A Águas do Rio, uma das concessionárias que venceu dois dos quatro blocos decorrentes da venda da Cedae, informou após seu primeiro ano de operação que seus investimentos evitaram "o lançamento diário de 1 milhão de litros de esgoto bruto em rios, canais e na Baía de Guanabara". Com base nas estimativas mais recentes de 2014, isso equivale a apenas 0,06% do total.

refinaria - Andrew Johnson - Andrew Johnson Esta reportagem foi originalmente publicada no site da Mongabay Brasil.

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