Deus foi sequestrado: o discurso fundamentalista contra as pessoas LGBT+
O mito da "ideologia de gênero", por mais irônico que seja chamá-lo assim, é a pandemia da vez. Dessa vez, o transmissor não é um vírus, mas um agente tão invisível e difícil de conter quanto. O fantasioso discurso propagado pela extrema direita religiosa no mundo desde os anos 90, de que exista uma "propaganda gay" por parte da esquerda mundial que ameaça a família tradicional e suas crianças, chega à era pós-Trump e pós-Bolsonaro ainda mais forte.
Nos EUA, há um movimento chamado "Anti-Trans Push in America" ou "o impulso anti-trans", em tradução livre. Caracterizado por uma proliferação de legislações em assembleias estaduais, puxadas por grupos extremistas bem financiados e coordenados, o intuito é impedir discussões sobre sexualidade nas escolas, o uso de pronomes e linguagem neutros, banheiros multigênero e o tratamento de saúde para pessoas trans.
O Tennessee vetou apresentações de drag queens em espaços públicos, recentemente considerada inconstitucional. Flórida e Texas proibiram a transição de gênero para menores de idade. E leis anti-LGBT já passaram em 46 estados. Estima-se que 525 projetos deste caráter tenham sido propostos em 2023. Já se vê uma "erradicação trans" em alguns estados e o presidente Biden chamou as medidas de "quase pecaminosas".
No Brasil não seria diferente. Um Projeto de Lei antitrans foi apresentado por dia nas esferas federal, estadual ou municipal somente nos três primeiros meses do ano. O chamado "Efeito Nikolas", gerado a partir do discurso transfóbico do deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) no plenário da Câmara no Dia Internacional da Mulher, parece ter animado ainda mais o bloco.
São poucas as chances desses projetos vingarem. E mais trabalho pro Governo, que deve vetá-los com algum desgaste, e para o STF, que pode aferir inconstitucionalidade. Porém, o fato não deve ser subestimado. Na prática, os graves sintomas promovidos pelo mito fundamentalista da "ideologia de gênero" - somados aos ataques à vida e aos direitos da população LGBT - são justamente a proliferação do ódio, da intolerância e das fake news, e a popularização de seus promotores.
No recém-lançado livro "Semente de Vida: rejeição e aceitação de filhos/as/es LGBTI+ em lares cristãos", eu e outros autores analisamos a influência do discurso fundamentalista religioso nas famílias e suas implicações - políticas, sociais e culturais - para toda a sociedade. A obra traz uma série de entrevistas com especialistas em sexualidade e gênero, direitos humanos, política e teologia - e relatos de pais, mães, cuidadores e filhos - para apontar, corajosa e cuidadosamente, a raiz da LGBTfobia, que se sustenta no que foi sacralizado pelo cristianismo colonizador como "natural" - a tal hétero-cis-normatividade.
Deus foi sequestrado!
O que se revelou a partir deste estudo, foi um ciclo de exclusão e violência às diversidades sexuais e de gênero que, na maioria dos casos, começa dentro de casa, impulsionado por um discurso cristão fundamentalista que relaciona a diversidade ao "pecado" e à "abominação".
E assim cresceram e crescem milhares de crianças e jovens educados à luz de leituras fundamentalistas, que criam "verdades bíblicas" que desconsideram o que a Ciência e os Direitos Humanos dizem sobre a diversidade da natureza humana, e seguem promovendo a ideia de "cura".
Este mecanismo sutil de interpretação e manipulação de discurso - utilizado agora de forma bem sucedida por uma extrema direita religiosa radicalizada - padroniza comportamentos, criando prejuízos incalculáveis na vida dessas famílias e implicações para toda a sociedade.
A boa nova, anunciada na contracapa do livro, é que: "Não há um cristianismo, mas cristianismos. [...] Enquanto o discurso fundamentalista religioso toma o Congresso Nacional com sua violência descabida, o discurso ético religioso já toma as ruas com sua disposição à união".
A obra apresenta um campo progressista religioso comprometido em anunciar uma visão amorosa de Deus, que celebra e afirma a diversidade. E antes que você pense que o tema "religião" não deveria entrar neste debate, eu faço um apelo.
Precisamos compreender que a disputa narrativa em curso passa pelas emoções e pela função da fé na vida das pessoas. É urgente fortalecer o trabalho deste grupo, se desejamos impedir que famílias conservadoras religiosas - apenas tradicionais, não radicais - sejam aliciadas por ideias fundamentalistas e caminhem para o extremo do espectro político.
É preciso que organizações do Terceiro Setor se aproximem de lideranças e organizações progressistas religiosas para construir narrativas que dialoguem com a perspectiva da fé, baseadas em uma produção teológica séria e comprometida.
Financiadores e filantropos poderiam parar de excluir projetos do campo progressista religioso da sua lista de "grantees", por serem religiosos. A mídia poderia ecoar as histórias de famílias cuja a relação com a fé promove acolhimento irrestrito e amor incondicional.
É urgente que passemos a investir, independente de orientações sexuais e crenças religiosas, em "esforços de reimaginação de um Deus que sai de um lugar rígido, hierárquico e violento por um que se permite encarnar no afeto, na celebração da vida e de sua potência criativa". Só assim - orgulhosos de sermos diversos e plurais - iremos frear o contágio do mito da "ideologia de gênero", o ódio e a intolerância.
✅*Gut Simon é comunicador social e estrategista de advocacy. Bissexual, homem cisgênero e cristão, é idealizador e coautor do livro "Semente de Vida", sobre família, fé e diversidade.
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