A gente não quer só comida: a cultura como um direito humano

Fato é que aquela excitação parecia inédita. E boa demais para não ser repetida. Passou a frequentar espaços culturais sempre que ganhava ingressos. Gostava quando a madrinha ou o padrinho dos ingressos ia junto. Mas não se importava de ir apenas com outras crianças e a educadora da casa de acolhimento, para onde foi levada depois que a mãe rumou para Mato Grosso, na companhia do namorado, e descumpriu a promessa de voltar em vinte dias. A vizinha não deu conta de cuidar de todos.

Num domingo de sol, foi a um show de música brasileira. Impressionou-se, primeiro, com o vestido da cantora. Era rosa, e sempre quis um vestido rosa. Depois, com a voz da moça, cujo timbre a fez inconscientemente lembrar da mãe. Não sabia o que era timbre, mas conhecia saudade.

Agora desejava cantar e calhou de a moça ser professora. Custeadas por um comerciante do bairro, as aulas de canto passaram a ser a busca do acalanto que já não tinha. Um colo acolhedor e quente, que a embalava em meio ao cotidiano frio. E por isso não faltava. Pela arte, fazia soar o emaranhado de sentimentos e emoções que por anos transitaram desorganizados e aflitos entre o peito e a garganta, procurando saída de emergência.

As notas musicais alavancavam as do boletim, que subiam junto com a autoestima de quem se notou finalmente capaz, embora sempre lhe tivessem dito o contrário.

O dia da estreia havia chegado. O sarau organizado pela vara da infância reunia crianças acolhidas para expressarem suas habilidades artísticas. Cantaria sua música preferida, num número só para si. Dormiu na véspera o pouco de sono que a ansiedade concedeu.

Da coxia, assistiu a um menino lendo a poesia que havia escrito. Falava de desencontros e do indomável da vida. Quando a realidade parece ficção, drama é documentário.

Ouviu a apresentadora chamar seu nome. Riana entrou no palco e, mesmo com os refletores sobre si, distinguiu na plateia lotada as amigas da escola, o padrinho, a tia do abrigo. Quase todo mundo.

No primeiro acorde, as mãos ainda esmagavam o microfone. Mas a voz saiu plena. Com o público cantando junto, percebeu as pernas se firmarem e o coração desapressar. Sentiu-se livre e enorme, do alto de seu metro e meio. Estava tomada de confiança e arrebatada de felicidade. Sorriu.

Existia.

O ApadrinhARTE, cenário em que aconteceu essa história, é um programa criado pela Corregedoria da Justiça de São Paulo que mobiliza madrinhas e padrinhos (inclusive pessoas jurídicas) para bancar atividades culturais para crianças e adolescentes que moram em casas de acolhimento do Estado de São Paulo. De ingressos em teatros, cinemas, museus, galerias, shows, a aulas das mais variadas expressões artísticas. Cultura é direito.

Para ser padrinho ou madrinha, entre em contato pelo email apadrinharte@tjsp.jus.br

*Iberê de Castro Dias é juiz Assessor da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo. Finalista do 2º Prêmio Ecoa, na categoria Causadores.

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