Contra a indignação banal, essa emoção que se fez vício e mercadoria
Mas há algo de mais estranho nesse movimento, algo de mais alarmante. Paro um instante antes de dizê-lo, porque não quero que soe como uma indignação nova, mais uma entre as denúncias pouco transcendentes que nos alimentam. O caso é que a indignação tem se feito mercadoria em nossas conversas, em especial nas conversas que travamos entre estranhos, desprovidos de presença, de corpos, de olhares. A indignação tem se feito valioso produto dos que desejam atenção massiva, e é evidente que isso deixa marcas em nosso cotidiano, em nossos discursos, nossos afetos.
O que te provoca, o que te revolta, o que incendeia teu ânimo? Essa parece ser a interrogação que norteia cada novo falatório, cada estridente intervenção em jornais ou em redes, por vezes até em discursos políticos e obras artísticas. No mercado de indignações, ganha mais quem mais vocifera, quem mais suscita agitações e estremecimentos. Enquanto isso, os outros afetos que esperem, ou que adormeçam. O que te alegra, o que te encanta, o que te seduz pela delicadeza? Onde ainda você encontra o singelo, onde alcança no ínfimo a beleza?
Não se indigne comigo pelo que estou dizendo, indignado de primeira ordem, peço que espere um momento. Não julgo impertinente a indignação, é claro que não, só não entendo por que ela tem se feito tão súbita e efêmera, indignação volúvel que nada transforma, e que nada deixa permanecer. Não se apresse: se a indignação for justa, haverá tempo para dizê-la, nunca será tarde para maldizer as injustiças do mundo e os desmandos do homem.
Mas convém pensar também nos versos de Nicolás Guillén, que Mario Benedetti soube eternizar como epígrafe de seu "Inventário". "Olhe a rua. Como você pode ser indiferente a esse grande rio de ossos, a esse grande rio de sonhos, a esse grande rio de sangue, a esse grande rio?" Não olhe o celular, olhe a concretude do mundo, olhe a rua. Muito mais que com palavras, é com corpos e vidas que devemos nos indignar, é com ossos e sonhos e sangue. Não é da enxurrada de discursos, e sim do grande rio da rua que nasce a indignação mais justa.
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