Como Kubrick nos ensina a viver longe da masculinidade tóxica e viril?
Os desígnios de Stanley Kubrick sempre foram misteriosos. O cineasta alimentou uma aura de entidade intocável. Recluso, por décadas sequer sabia-se sua aparência. Na Inglaterra, um farsante levou alguns anos passando-se pelo diretor, dando palestras, golpes, namorando homens e mulheres. Enquanto o Kubrick original trabalhava em sua fazendinha escondida também no interior do Reino Unido, onde construía seus sets e filmava suas obras.
Em "Doutor Fantástico", de 1964, vemos, em uma cena, um coronel entrar em surto porque brochou com uma mulher, e iniciar uma guerra nuclear contra a União Soviética. Em outra cena, um piloto se joga, cavalgando em êxtase erótico, balançando seu chapéu de caubói, uma ogiva nuclear em forma de falo. No fim do filme, um grupo de homens sobreviventes do fim do mundo planeja como viver em cavernas com 90 mulheres para cada um e resolvem que o apocalipse, nesse caso, vale a pena.
Em "Nascido Para Matar", o sargento, que treina recrutas para a guerra do Vietnã, ensina obsessivamente uma canção exercício para os jovens: a partir de agora, seus fuzis são extensão de seus pênis. E devem usar suas armas com a mesma libido com a qual usam seus falos. Quando chegam ao Vietnã, os soldados, viris e machões e preparados para tudo, são, um a um, dizimados facilmente por uma única jovem guerrilheira vietnamita.
Em "Laranja Mecânica", Alex de Large e seus drugues usam um traje que aumenta a aparência de suas genitálias. Sua principal diversão é estuprar mulheres. Uma delas é morta com uma escultura em formato de pênis.
Em "O Iluminado", uma família de pai, mãe e filho se isolam em um hotel onde anos antes um homem cometeu feminicídio contra sua esposa e duas filhas. À nova família acontecerá o mesmo. O pai enlouquecerá e perseguirá mulher e filhos com um machado. Quando falha, é acolhido pelo hotel, que o exibe, eternizado, em uma foto na parede tirada em 1917.
Em "De Olhos Bem Fechados", um casal sem defeitos, ricos, bem resolvidos, belos, têm suas fantasias sexuais. Ela consegue consumá-las, em sonhos, sem maiores encucações. Ele procura vingança na vida real e tudo o que encontra é impotência. A elite intelectual da cidade se reúne em segredo para a orgia mais sem imaginação que se possa conceber.
Em "Lolita", dois intelectuais pedófilos se relacionam com uma menina de 12 anos e sua mãe. A mãe acabará morrendo ao surtar quando sabe que seu marido pensa em sua filha quando transam. A filha terminará grávida aos 17, e indo morar no Alasca com um jovem carpinteiro que não lhe dará nenhum futuro.
Em "Barry Lyndon", um sujeito pobre da Irlanda, em busca de ascensão social, seduz e destrói a vida de uma mulher da alta sociedade. O cartaz do filme é o desenho de uma bota masculina com uma pistola na mão, com um falo balangando, pisando em uma rosa vermelha.
a fama de "cineasta da distopia", que é atribuída a Kubrick, é, na verdade, uma leitura específica. Desde primatas, escolhemos privilegiar a forma masculina e viril de gerenciar nossas vivências, de estruturar nossas sociedades. E esta forma, definitivamente, fracassou. Está na hora de entendermos isso. E sem colocar a culpa, por exemplo, no movimento woke ou no identitarismo, como vem acontecendo com a geração de intelectuais de 50 anos, que estão vendo seu mundo de privilégios derreter entre os dedos.É o caso apenas de tentarmos do outro modo. Em casa, cercado de mulheres (Kubrick só teve filhas), observando o mundo que construímos todos os dias aqui fora besuntado apenas de testosterona, 💥️o cineasta parece querer propor um novo modo de se relacionar com o mundo.
O bebê, ou a bebê, que retorna à Terra, evoluído, ou evoluída, ao fim de "2001" para nos salvar e ensinar a evoluirmo-nos, não tem gênero. Kubrick não enquadra os genitais, finalmente não há falos. Há androginia da misteriosa criatura, e a esperança em júbilo da música de Strauss que encerra o filme.
💥️Relacionar-se com a filosofia misteriosa embutida nos filmes de Stanley Kubrick nos estimula a questionar a virilidade, essa coisa que não deu certo, tão cheia de certezas, que se relaciona tão mal com o mistério, e finalmente evoluir: saber cada vez melhor a importância daquilo que não sabemos.
✅*💥️Dodô Azevedo é escritor, roteirista, DJ, cineasta, professor de fllosofia.
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