Uma menina sente a angústia do fim: a reação infantil aos tempos terríveis
Minha filha anda preocupada com a finitude. Aos cinco anos, parece sentir a angústia do fim, mas uma angústia que não a abate nem a entristece, que mais a deixa intrigada e lhe serve a um conjunto de raciocínios. Sobre a finitude, na verdade, ela fala pouco. Prefere sublimar a mortalidade pensando na potência do infinito — essa visão que, segundo Borges, desperta o terror e o fascínio do coração humano desde as origens.
Na máxima banalidade Tulipa iniciou suas sondagens empíricas, criando uma técnica para que seu pão de queijo nunca termine. Consiste em dividir o que resta a cada nova mordida, de modo que haja sempre um pedaço a mais a ser comido. Eu vejo a alegria em seu rosto enquanto ela vai partindo o pão em novos nacos, e não lhe digo que há quase três milênios um filósofo grego postulou um paradoxo parecido. Também não ressalvo que, se aplicada até o limite a lógica do velho grego, o simples ato de comer um pão se torna impossível. Mas rimos juntos quando ela conclui, com algum desânimo, que a técnica é imperfeita, pois os pedaços cada vez mais ínfimos já não trazem nenhum sabor, nenhum prazer, e assim já não podem ser chamados de pão de queijo.
Dias depois ela desiste das experiências gustativas e passa à matemática, dizendo ter uma ideia de como contar números até o infinito. Eu sei, pai, que o infinito é o único número que não existe, ela diz, numa frase que não me lembro de ter dito ou ouvido. Mas ela propõe que nos aproximemos dele juntos, por uma estratégia que envolve boa parte da família. Cabe a mim começar a contar, e seguir contando pelo resto dos meus dias. No meu leito de morte, eu digo a ela em que número estou, e ela continua a partir dali até seu leito de morte, quando passará a contagem a sua filha, e a filha à neta, e a neta à bisneta, e assim sucessivamente. Não lhe digo que aqui os limites serão humanos: que alguma geração decerto se recusará a seguir a doutrina e o número estará perdido, ou que um dia não haverá mais humano nenhum e tudo estará perdido. Sinto que não é tempo de alardear apocalipses.
Sua última postulação é um pouco mais direta, fala com mais exatidão sobre seu medo do fim. Uma noite, antes de dormir, talvez para se desviar dos pesadelos que lhe têm sido frequentes, ela diz que já sabe como fazer para viver infinitos anos. Precisa realizar algo de singular e memorável, e principalmente ser muito querida. Assim, quando morrer, as pessoas continuarão festejando seu aniversário e, mesmo ausente, ela não deixará de somar seus anos infinitos. Eu sorrio, tento encorajá-la nesse desafio imenso, e sobretudo acho bonito que sua ideia de infinitude não inclua a imortalidade, a permanência de seu próprio corpo. Para ela, basta sobreviver em forma alusiva, basta que seja lembrada para que exista.
Em tudo isso eu acreditava ver alguma reverberação da morte de seu avô, que há poucos meses fundou um pequeno vazio na família. Pode ser que não passe disso, dessa perda tão comum que marca os primeiros anos de crianças infinitas, e que às vezes custa um tanto a ser entendida. Na morte do meu pai ela pode ter antevisto a minha morte, e isso talvez tenha lhe antecipado a imagem da sua, em indubitável vertigem.
Mas ontem um colega seu entrou na sala de aula alarmado e esbaforido, e anunciou aos que o ouviam a mais triste das notícias, que num dia próximo um homem armado entrará na escola e atirará contra as crianças. É um menino bom e doce, e queria proteger seus colegas do mal que acabava de ouvir, sem saber que assim difundia um boato terrível. Como se há de imaginar, foi grande o alarido, talvez menor entre as crianças do que entre os pais irritados, assustados, impacientes, perdidos. Das acusações passou-se à nostalgia, de um tempo em que a infância não comportava tais horrores, em que na escola não percutia esse alarde todo que temos visto.
Agora não sei bem a natureza que tem na minha filha a angústia do fim. Não sei bem o que agora desperta seu terror, e se o terror poderá romper com seu fascínio. Sei que devo deixá-la livre para que brinque com o infinito, para que a morte lhe seja vaga e distante, não mais que uma ideia abstrata, por vezes leve, até risível. Mas sei também que o mundo a tem atingido com sua ficção áspera e com sua realidade terrível, e que nos caberá lidar juntos, com sabedoria máxima, em gerações sucessivas, com as novas expressões dessa angústia infinita.
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