História do racismo na USP coincide com a história da USP, diz professor

Na manhã de 9 de novembro de 2022, um grupo de professores negros da Universidade de São Paulo (USP) foi recebido pelo reitor em seu gabinete, no campus Butantã, zona oeste da capital.

O encontro era muito aguardado: 💥️Eles estavam ali para entregar à autoridade máxima da instituição uma carta elaborada ao longo de meses, reivindicando cotas para pessoas negras e indígenas nos concursos de professores, e um abaixo-assinado com mais de mil assinaturas em apoio.

Mas ir à reitoria para formalizar essa demanda inédita na USP não foi o que mais emocionou o professor Celso Oliveira.

Integrante do Grupo de Docentes Negras e Negros da USP e da Associação dos Docentes da USP (Adusp), ele chorou quando saiu do prédio e encontrou dezenas de estudantes, de maioria negra, com faixas e palavras de ordem em apoio à pauta dos professores.

Os alunos tinham passado a maior parte da manhã ali, debaixo de um "sol de lascar", tentando fazer barulho como podiam. "Eu me arrepio só de lembrar. Quando a gente olha na carinha deles, é lá que está a esperança", diz Celso Oliveira a 💥️Ecoa.

entrega reitor - Adusp/Divulgação - Adusp/Divulgação

Negros são 2% dos docentes da USP

💥️Atualmente, na USP, há apenas 125 pretos e pardos em um total de mais de 5.531 professores, o que equivale a 2,3% do total.

O coletivo de docentes negras e negros da universidade surgiu às vésperas das eleições para reitor realizadas no fim de 2023. Duas chapas concorriam com propostas distintas em relação a ações afirmativas e professores negros se organizaram para pautar suas expectativas em relação à nova administração.

Esse primeiro grupo se desfez, mas o contato entre professores negros de diferentes áreas da USP ficou.

"Para mim foi uma emoção poder começar a dialogar com os colegas", diz Eunice Prudente, primeira e única professora negra da Faculdade de Direito da USP. "A gente viu o quanto temos em comum, as dificuldades no concurso de ingresso da USP e na progressão da carreira".

A origem social era outro fator semelhante entre muitos desses professores. "Somos de famílias de trabalhadores. Foi muito difícil nos manter na universidade", completa Eunice.

eunice - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal concretizou em maio de 2022 a promessa de campanha de criar um órgão para centralizar as ações ligadas às políticas afirmativas e de permanência, a Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento.

Foi por volta dessa época que os professores voltaram a se articular para reivindicar ações afirmativas na admissão dos docentes.

💥️A proposta do grupo é que todos os concursos de docência tenham reservas de vagas até a inclusão de, no mínimo, 37% de professores pretos, pardos ou indígenas nas unidades. A porcentagem corresponde à população negra do estado.

As 'resistências' contra a proposta

"O movimento negro organizado sempre existiu dentro da USP", diz o professor Celso Oliveira. "Nossos pleitos sempre foram legítimos. O que estamos fazendo agora é organizar esses esforços num momento histórico que nos permite diminuir as resistências contra eles".

Essas "resistências" são argumentos contrários à reserva de vagas na docência que os professores ouvem há anos e apontam como falaciosos. "São uma forma de encobrir o racismo", diz Celso. "A história do racismo na USP coincide com a própria história da USP".

celso - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal menos de 3% das instituições de ensino superior brasileiras têm um número de professores negros que espelha a distribuição racial da região.

"Apesar da existência de pessoas negras capacitadas, a contratação nos concursos não vem ocorrendo. Isso demonstra que existe um racismo na forma como se estrutura o ingresso dos docentes nas universidades brasileiras", afirma Celso Oliveira.

Essa defasagem na contratação de professores negros é reconhecida pela pró-reitora de Pertencimento e Inclusão da USP, Ana Lanna. "Sabemos que [os candidatos] existem. A gente sabe que tem que melhorar, 2% não dá", diz a 💥️Ecoa.

Apesar disso, ela afirma não ter ainda um posicionamento institucional definido sobre a proposta de reserva de vagas.

💥️O grupo também reivindica um incentivo à progressão na carreira para esses profissionais. Praticamente não há negros entre titulares e são eles que podem concorrer a cargos de decisão, como o de reitor.

'A mesma luta em estágios diferentes da vida'

O ato realizado por estudantes em apoio aos professores, que ocorreu no fim de 2022, foi organizado pelo Malungo, coletivo negro da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.

"Foi um momento muito simbólico, de unificação de forças", diz a 💥️Ecoa Felipe Leonidas, estudante e membro do Malungo. "A gente se reuniu numa roda grande pra conversar e teve muito esse reconhecimento da mesma luta em estágios diferentes da vida. Foi muito bonito".

Os grupos criados por alunos negros se multiplicaram desde 2017, quando a USP adotou cotas sociais e raciais na graduação. A medida mudou a "cara" da universidade: entre 2010 e 2023, o número de estudantes autodeclarados pretos, pardos ou indígenas quadruplicou, de acordo com dados consolidados pela Globo.

Apesar de ter sido o berço do debate sobre cotas raciais no país, a USP foi, ao lado da Unicamp, uma das últimas grandes universidades públicas brasileiras a adotar a reserva de vagas para pretos, pardos e indígenas na graduação.

💥️Na centenária Faculdade de Direito do Largo São Francisco, a primeira turma com cotistas concluiu o curso no fim de 2022.

"A Faculdade de Direito da USP já é diferente. Há muitas questões que são agora mais discutidas porque os negros estão lá", diz a professora Eunice Prudente, que se graduou entre 1968 e 1972, quando não havia nenhum docente e poucos colegas negros na São Francisco.

Primeira turma de alunos cotistas formados pela Faculdade de Direito da USP, em 2023 - Divulgação/Centro Acadêmico XI de Agosto - Divulgação/Centro Acadêmico XI de Agosto Primeira turma de alunos cotistas formados pela Faculdade de Direito da USP, em 2023

Para Felipe Leonidas, ter professores não brancos impacta o horizonte de possibilidades de alunos como ele: "Traz uma noção de que a gente pode alcançar aquele lugar também".

Em todas as áreas do conhecimento a USP vai se desenvolver com a presença de mais professores negros. Vai se tornar muito melhor"
💥️Eunice Prudente, professora da Faculdade de Direito da USP

'Única coisa dada de graça foi chibatada'

Depois de ser formalizada com a entrega da carta ao reitor no fim de 2022, a proposta de reserva de vagas precisa ser votada pelo Conselho Universitário (CO), principal órgão deliberativo da universidade.

Segundo a Pró-Reitora de Pertencimento e Inclusão Ana Lanna, a mobilização dos coletivos negros nesse tema levou a Procuradoria Geral da universidade a cobrar uma resposta da Prip.

O órgão abriu um processo de consulta à comunidade para coletar informações e propostas que serão discutidas em 9 de abril, mas não tem poder de decisão sobre o assunto.

Enquanto esperam que a medida seja pautada no CO, professores e estudantes têm se movimentado para levar o debate para as unidades. "A ideia é que a gente consiga construir esse apoio político a partir das bases", diz a 💥️Ecoa o estudante Felipe Leonidas.

Na FAU, a reserva de vagas para docentes PPI já foi aprovada pela congregação. "A gente está tentando exportar essa vitória para outras unidades da USP, mas há resistência e mais do que isso, inação", afirma Leonidas.

Para o coletivo de professores negros não há argumentação válida para rejeitar a proposta.

Os sorrisos na entrega dos documentos e os tapinhas nas costas existem, mas não há movimentação que não nasça da nossa própria iniciativa. Ao negro no Brasil, a única coisa dada de graça foi chibatada nas costas. Todo o resto foi conquista. Nesse tema não será diferente. 💥️Celso Oliveira, professor

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