Haja artificialidade pra tanta rotina

A vida deu voltas e eu voltei para o mesmo lugar.
Estou até reescrevendo sobre Luiz Gonzaga, minha criança interior ou meu adulto interior. Mas, agora rodeada de doulas, coaches e inteligência imaginária artificial, sensitiva ou gastronômica. Frequento o mesmo salão há mais ou menos cinco anos. Bem longe da minha casa. Eu, que vivo falando das tardes de sábado rodeada de mulheres, enfiadas em baldes e bacias. Cuidando da vida delas, da vida da gente?
Este ano o salão melhorou de posição e implantou um sistema de e-mails para se comunicar com a clientela. Foi aí que comecei a notar que o atendimento piorou. A cada vez que vou até lá, sou atendida por um profissional diferente e o padrão degringolou criteriosamente, chegando a faltar material que eu julgava imprescindível para ter o mínimo. Me explico.

Num certo dia do ano passado, cheguei para o atendimento às 14:30.
Fui informada que por ter chegado atrasada, a casa disponibilizaria pra mim um horário extra às 16 horas. Eu fui surpreendida com o que foi falado:
— Então, eu não marquei às 14:30?
Fui orientada que talvez o sistema tenha tentado me incluir num horário satisfatório pra mim. Levando em conta que faço hemodiálise há 26 anos, neste mesmo horário, às 16 horas eu tenho compromisso. Alguém ali comeu bola, mas como o sistema não tem nome, nem endereço, não é culpa de ninguém. Só minha mesmo, já que computador não se engana.

Tive impressão de que a pessoa que me atende há cinco anos está tirando o dela da reta. No entanto, isto acontece em quase todo lugar que deveria cumprir a regra de horário marcado para otimizar o tempo de atendimento. O Sistema é o segundo nome para estrutura, seja no SUS ou no convênio particular, fórum, laboratórios, atendimento do governo, tipo banco ou INSS. Nunca funciona.

Pra confundir ainda mais, há uns painéis de controle, que ficam cantando o bingo da pedra escolhida acrescida de número e letra. Quantas vezes a gente chega duas horas antes do horário marcado, e quatro horas depois, está ali diante do painel que nunca chama sua senha. Não, não é mimimi. Mês passado, minha mãe tinha ressonância pra fazer numa certa clínica às 14 horas. Chegamos às 12:30. Às 16 horas, a atendente avisou que não chamou minha mãe porque estava aguardando o paciente das 12 horas que chegou atrasado e que a clínica só tinha uma máquina, sendo o exame dele maior que o dela. Ele chegou às 16:45 e entrou na única máquina que tinha. Mãe ficou nervosa, hipertensa, mas esperou. Entrou no exame às 18 horas e a atendente disse que otimizou o atendimento às 20 horas, dizendo que mãe estava hipertensa porque deveria não ter tomado o remédio. O jejum de 12 horas não tinha nada a ver com isso.
Neste caso tivemos que otimizar com um boletim de ocorrência e entrar com uma liminar contra o convênio dela (aquele lá do "óbito também é alta").
Bem medido e bem pesado toda vez que o humano falha e é passível de falha, joga-se a culpa para o sistema, que por si só já é falho.

Voltemos ao salão que frequento.
No pacote dos serviços que me ofereciam, era bom porque incluía botox, harmonização facial e outras coisas que não me interessavam. Eu só quero o básico. Então, dei uma sugestão:
"E se enquanto eu fizer limpeza de pele, incluísse ali um spa dos pés?"
Fui ouvida e atendida, fiquei contente e comprei logo um pacote de três sessões.
Na primeira sessão, não tinha material mas a funcionária era como eu, criativa.
Saiu ali na loja ao lado e comprou um rolo de papel filme, improvisamos e deu certo.
Na terceira sessão, o papel acabou e a clínica não comprou outro. Será que era pra eu levar o material?
Desde que minha ideia foi incluída no sistema, comprei três vezes o pacote de três sessões cada uma. Em todas elas não tinha o material que a gente improvisava.
Eu tentei falar com o dono da empresa, mas ele botou um robô pra falar comigo.
Ai eu peguei birra deste coach da beleza da Jacira. Deste harmonizador de nada.
E quando eu birro, começo prestar mais atenção.

Assim sendo, eu já havia comprado dois pacotes de spa dos pés e em dezembro comprei o terceiro para iniciar 2023 com os pés em dia. Fui informada que o salão sofreria uma harmonização pra melhor atendimento. Achei esquisito que pra melhorar ele precisasse sofrer. Em janeiro tentei marcar minha ida ao salão sempre às 14:30, não deu certo. Fui informada pelo sistema que este horário pertencia a outra cliente.
Marquei para fevereiro às 14:30.
Ao chegar no horário marcado, fui informada que faria o tratamento em partes porque o horário foi ocupado por uma cliente, otimizado pelo sistema.
Não aceitei a desculpa e remarquei para março. Daí lembrei do antigo salão que eu frequentava antes, onde duas amigas trabalham e dividem o pequeno espaço no mesmo prédio e no mesmo andar. Ali sempre fiz acupuntura, depilação, reflexologia?
Sempre são elas que atendem o telefone, olham a velha agenda de bolso e combinamos dia e horário. Um dia antes elas sempre me dão um toque pra eu não esquecer. Falamos tanto durante o tratamento, trocamos ideias. Como estas duas mulheres me lembram a sala da casa da minha mãe.

Chegou março e fui informada que precisaram remarcar meu horário para 16 horas para otimizar meu tempo, dizendo que agora naquele horário estava reservado os atendimentos com a doutora dermatologista. Não me interessa este tratamento, quando preciso vou à clínica, que hoje em dia dermatologista só trabalha com corticoide e, quando muito, com calmante pra gente aceitar o problema mesmo. Recusei, expliquei e remarquei para 21 de março. Uma semana antes recebi a mensagem:
"Atendimento marcado para dia 20 às 14 horas". Entrei em contato.
"Foi a otimização do sistema", me disse a máquina.
— Eu quero dia 21 às 14:30, como foi marcado -- disse eu.
— Não se preocupe, vamos otimizar.

Estou criando ranço desta palavra "otimizar", igual "rainha" ou "empreendedora", entre tantas outras. Ainda na sexta-feira, o sistema otimizou meu horário outra vez. Não bastasse isso, terça-feira às 10 horas da manhã, o sistema me avisou: "Não esqueça seu compromisso hoje às 15:30".
Ai eu surtei, mandei mensagem.
Às 14:30, cheguei no local fui atendida por uma funcionária nova que me disse que o sistema jogou o horário para 15:30 pra me dar maior conforto. Acontece que o procedimento dura uma hora, então se iniciarmos às 14:30 terminaremos às 15:30, isto é lógico. E, mais uma vez, não tinha papel filme, já que o sistema esqueceu de comprar. Enfim, me senti lesada e desfiz o acordo com o salão.

Marquei com a Rosa, minha vizinha que realmente otimizou meu horário para oito horas da manhã e pontualmente me atendeu. É uma pena que as pessoas se deixem iludir com essas novidades da internet achando que colocando um robô para atender a gente o serviço vai melhorar. É pena que gastem dinheiro e energia com algo tão distante e deixem de valorizar a pessoa que recebe seus clientes.
Ainda não perceberam que quando tudo dá errado, a gente tem pra onde voltar.
A gente não quer essa tal harmonização, eu não quero.
Nem coach de beleza, nem gastronômico, nem coach espiritual, doula ou influencer.
Queremos aquilo que sempre deu certo porque sempre esteve aí.
Aquilo que quando a gente perde, a gente liga pra mãe e pergunta:
— Mãe, onde tem manicure?
Elas ainda existem.
— Mãe, quem tira a sobrancelha?
Elas aparecem.
— Mãe, como a gente otimiza o tempo?
Deixando de acreditar nessas besteiras da rede e nesta tal inteligência sistemática, artificial, fria e desumanizada.
A gente nem tem roupa pra tanta mudança sem sucesso.

O que você está lendo é [Haja artificialidade pra tanta rotina].Se você quiser saber mais detalhes, leia outros artigos deste site.

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