A arte e a tecnologia da desescutação

Chegamos a uma cultura da impossibilidade de escutar o outro por uma longa estrada que começou com nosso horror à solidão

Chegamos a uma cultura da impossibilidade de escutar o outro por uma longa estrada que começou com nosso horror à solidão Imagem: Getty

Tendemos a interpretar palavras como "arte" ou "tecnologia" com um sentido positivo. No entanto, existem artes que prosperam de forma silenciosa ou indireta, que nos levam a técnicas de si, que em um contexto social podem ser produtivas ou de acordo com ideais e em outro se tornam profundamente contraproducentes.

Pensemos em Dom Quixote, que se apega a valores como honra, coragem e nobreza, mas se torna um personagem anacrônico a ponto de ser tomado por louco.

Por exemplo, em uma cultura de altíssimo engajamento atencional, contra a oferta digital de dispersão, produzirá um sentimento genérico de que estamos todos desatentos, desconcentrados e sem foco. Assim também a arte de deixar de escutar o outro pode ser desenvolvida no contexto de excesso de foco em outras coisas.

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Tecnologias de desescutação podem ser descritas, assim como qualidades do tipo "fidelidade a objetivos", "aderência a disciplina", "foco em resultados" podem concorrer para a desescutação. Abordei o tema em meu trabalho com Claudio Thebas sobre "O Palhaço e O Psicanalista" (Editora Planeta), ligando-o com o declínio de uma cultura lúdica.

A sensação é de que está cada vez mais difícil escutar o outro. Assumir a sua perspectiva, refletir, reposicionar-se e fazer convergir diferenças está cada vez mais difícil de ser praticada. Isso se aplica tanto ao espaço público com suas novas e inesperadas conformações digitais quanto ao espaço privado das relações amorosas ou amistosas, passando pelas relações laborais e institucionalizadas. Uma descrição resumida desta situação costuma salientar que nossa vida está cada vez mais acelerada, icônica e funcionalizada.

A aceleração é um fenômeno da cultura da performance generalizada, derivada do universo da produção e da soberania do resultado. Vivemos hoje com um acervo de instrumentos e meios que excedem o limite de nossas faculdades mentais "em estado natural". Isso afeta brutalmente a situação de fala, que de certa forma se torna um pouco anacrônica.

Não é um acaso que novas síndromes envolvendo mutismo seletivo (como o do personagem Rajesh Koothrappali do seriado "The Big Bang Theory) e mutismo generalizado em crianças sejam cada vez mais frequentes. Neste ponto não há exatamente uma novidade, mas o exagero e aprofundamento deste princípio que define a modernidade desde Baudelaire e Benjamin.

O caráter icônico refere-se ao fato de que cada vez mais lemos a mensagem que o outro nos envia em pacotes de informação, compostos por imagens e textos, que se apresentam como um "tudo de uma vez". A resposta antecipada para uma determinada imagem coordena nossos códigos de comunicação e de produção de desejo, de tal forma que é preciso rapidamente acolher ou descartar, inibir ou estimular o progresso da comunicação com o outro. É o que alguns teóricos da linguagem chamam de cultura do "connect" e "cut", onde há igual facilidade de acesso e desligamento no contato com o outro.

Isso gera um estado de falas interrompidas, demandas cruzadas, palavras sem destinatário, entonações indeterminadas. É preciso rapidamente ler a pessoa por seu estilo de aparência, por objetos de afirmação narcísica ou por seus pequenos gestos estilizados que nos oferecem, "de uma vez", a essência de sua mensagem. O semblante, ou seja, a gramática de imagens que define algo ou alguém exige que sejamos rapidamente "enquadrados" em categorias disponíveis para que a interação não enfrente as ambiguidades que a experiência da fala traz consigo.

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Outro traço de nossa tendência a desescutar os outros está muito ligado a certos esquemas de ação ou protocolos de funcionamento. É preciso saber, e de preferência de modo não ambíguo e rápido, o que o Outro quer de nós em determinada situação. É o que se poderia chamar de vida em formato de demanda. Onde há um encontro é preciso decidir rápida e iconicamente o que os envolvidos querem, e a negociação tende a ser curta porque variáveis de contexto se impõem dramaticamente.

Se você está no site de restaurantes, já decidiu que quer comprar comida, se está no site de pornografia, não tem amor, e assim por diante. Com isso somos compelidos ao que alguns psicanalistas chamam de "monólogos de gozo", ou seja, o sujeito está falando sozinho, sem se dar conta. Ele "pratica sua fantasia" de forma generalizada e a céu aberto, como se ele não se preocupasse muito em "ser entendido" ou "se fazer compreender". Na medida em que o outro lhe aparece como alguém relativamente impessoal e indiferente, geralmente reunido em alguma categoria-tipo simplificada, ele pode "usá-lo" para repetir o que não consegue impedir-se de dizer. Como nos diálogos "surrados" entre casais nos quais um "espreme" o outro empurrando-o a "cuspir" aquela mesma desagradável e corrosiva mensagem devastadora, tantas vezes repetida na história dos dois.

Comparemos estas características, representadas pela demanda funcional, icônica e acelerada, com a experiência da fala.

Lembremos que o psicanalista Jacques Lacan resumia o tratamento psicanalítico simplesmente a esta passagem da fala vazia para a fala plena. Lembremos que, desde sempre, falar colocando-se realmente no que a gente diz, e escutar os efeitos do que a gente diz sem que suas consequências fiquem esquecidas por trás de tantos ditos, repetidos, pré-fabricados e vazios é de fato uma experiência muito difícil e rara.

Quando isso acontece nossa ligação com o outro se modifica, que ele não será mais indiferente e nem apenas um meio para que nossa demanda funcional seja atendida. Ele passa a entrar em nosso circuito de simpatias e preferências, não só em nosso sistema de interesses, simplesmente por que sentimos que ele ou ela nos escuta... de verdade. A demanda funcional mata este aspecto da fala.

Há uma relação muito íntima entre falar com o outro e certo tipo de experiência com o tempo. Quando estamos em um "bate-papo" dizemos que estamos "jogando conversa fora" justamente porque nossa experiência do tempo muda. Não queremos chegar no final das coisas, nem concluir teses, apenas estar junto, com o outro, descobrindo e criando coisas juntos.

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Falar traz um tempo diferente do escrever. Temos que esperar o outro terminar uma frase. No interior da frase uma palavra tem que vir depois da outra até o fim. Temos que esperar. Há uma negociação para identificar o instante de troca de turno (momento no qual passamos a palavra para o outro). É preciso escolher a "hora certa" para contar uma piada, fazer um adendo ou uma interpolação. Quando estamos falando com o outro precisamos medir a perda ou ganho de atenção do interlocutor, avaliando se estamos indo muito rápido ou demasiadamente lento em nossas ideias.

A experiência da fala comum exige ainda examinar durante a própria conversa a compatibilidade e pertinência do conteúdo, verificar a congruência deste com sua forma expressiva, reunir a fala com a dimensão não verbal ou corporal da conversa e assim por diante. Comparando com o termo icônico do "tudo de uma vez", não conseguimos "falar tudo de uma vez", temos que ir palavra a palavra.

Quando temos um texto, um e-mail ou um torpedo, ou mesmo uma carta podemos decidir por onde começar, pelo fim, pelo meio ou pelo começo. Podemos escolher se queremos basear nossa resposta apenas percebendo o remetente, o título ou o assunto. Pequenas dicas podem decidir todo o futuro do "contato" permitindo ver o conjunto e decidir sua "interessância" (como os "tags" automáticos usados pelos antispam).

E-mails longos são lidos só em seus termos decisivos, e quando a gente quiser, onde a gente quiser e se a gente quiser. Na fala, ao contrário, estamos "amarrados" na situação, presos em um jogo de "risco" no qual as coisas devem ser decididas em "tempo real". A aceleração da experiência ataca este aspecto da palavra criando um tempo "irreal" em meio a uma degradação da experiência de fala apenas a uma peça de comunicação.

Passemos ao caráter icônico de nossa surdez, lembrando que o ícone é uma imagem para ser vista ou percebida imediatamente. Um filme de Ingmar Bergman, por exemplo, tornou-se impossível para nossa época, assim como certas obras sinfônicas. Isso ocorre porque neste tipo de experiência estética, o silêncio, o vazio e indeterminação de sentido são cruciais. O intervalo faz parte da matéria-prima da mensagem.

Muito se falou sobre o mito de Narciso em psicanálise, no qual o sujeito apaixona-se por sua própria imagem. E de fato, nos anos 1970, descreveu-se um tipo de comunicação narcísica ou imaginária caracterizada pela manipulação do interlocutor segundo certas regras: responda uma intimidade com outra intimidade, elogie dando espaço para que o outro retribua, mostre-se mais a si mesmo do que o conteúdo do que você está falando, entenda que a atitude expressa pelo que você diz é o que vai decidir a conversa, aliás o diálogo terá uma estrutura muito simples: quem fará quem invejar quem.

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Os sintomas deste tipo de posição subjetiva também foram bem descritos: sentimento de esvaziamento, solidão e inautenticidade.

Ocorre, e isso é bem menos mencionado, que no mito descrito por Ovídio, Narciso tem uma amante chamada Eco. A ninfa Eco declara seu amor a Narciso que não pode escutar, pois tudo o que ele pode escutar é o eco de suas próprias palavras. Podemos dizer que a conversação narcísica dos anos 1980 evoluiu para a conversação ecolálica dos anos 2000 e para o autismo dos anos 2023.

Curiosamente a solução para este estado de coisas é uma volta aos antigos anos 1960, quando Lacan definiu a importância da palavra plena em nossas vidas, como caminho para reconhecermos nosso desejo e fazermos este desejo ser reconhecido pelos outros (o que não é o mesmo que termos nosso eu reconhecido, como Narcisos).

É justamente por ter se tornado uma raridade que a palavra bem-posta, em seu tempo de palavra falada e empenhada, com sinceridade e intimidade, conforme o caso, da boa conversa, tornou-se também um bem precioso e cobiçado.

Dois afetos reduzem nossa capacidade de escutar o outro: ódio e vergonha.

Há uma alteração generalizada do humor, sim, com a emergência de dois afetos fundamentais: o ódio e a vergonha. O ódio é conhecido como um afeto muito importante na economia de nossa separação com relação ao outro. Ele é uma das oposições possíveis do amor, ao lado da alternância entre amar e ser amado, e amar e indiferença. O que está em jogo no ódio é o conteúdo invertido do amor.

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Nesta nova onda de ódio generalizado —ódio informe, ódio sem causa— é que o ódio perdeu sua eficácia separadora. São pessoas xingando operadoras de telefonia, atendentes de telemarketing, vociferando contra carros que andam devagar, chutando computadores ou vendedoras morosas ou caixas de banco indefesos. São ataques a pessoas por sua cor, credo ou orientação política, que no fundo produzem falsas separações, porque estão baseados em falsas ligações. Ou seja, é um ódio que em vez de marcar um afastamento e garantir que queremos mesmo "nos livrar" daquela pessoa funciona como um apelo: "pelo amor de Deus, alguém note que eu estou aqui, sofrendo no deserto!". É um ódio baseado nesta legenda de que ninguém nos escuta, ninguém está interessado em nossas razões, ninguém "quer saber". E assim como sentimos que o outro nada quer saber de nós, nós nos pomos a "nada saber do outro", mas nós o fazemos "ostensivamente", ou seja, de modo "pirotécnico", meio exagerado, para todo mundo ver e perceber nosso ataque de cólera.

Naquele filme "Um Dia de Fúria", Michael Douglas, preso em um congestionamento, sai distribuindo pancadaria e destruindo tudo o que vê pela frente. Mas ele faz tudo isso tomado por uma espécie de fria indiferença. O que temos hoje é quase o contrário disso, somos matadores pirotécnicos de zumbis, que estes sim, são percebidos como indiferentes, autômatos e sem alma. Este é o tipo de ódio que se dissemina por projeção, ou seja, no sistema de surdez ao outro e de eco ao próprio sentimento de raiva contra a própria irrelevância.

Chegamos a uma cultura da impossibilidade de escutar o outro por uma longa estrada que começou com nosso horror à solidão, passou pelo cansaço com nossa própria capacidade de contar e inventar histórias, chegando à criação de formas artificiais de "companhia" com a vida digital e finalmente com a "contratualização" da vida cotidiana.

O sentimento social que alterna o desamparo e solidão com o medo pela guerra de todos contra todos cria um tipo de laço que não é mais baseado no risco da palavra, mas na garantia de proteção por identificação. Para criar algum sentimento de pertencimento é preciso participar de um grupo codificado, e para isso é preciso responder de forma homogênea. Porém, os grupos horizontais, definidos pela partilha de um traço comum, rapidamente foram substituídos por grupos de guerra, muito mais fáceis de constituir, baseados no ódio contra um inimigo comum.

Um fato importante na nova cultura da indiferença e do ódio é que nossas respostas não são exatamente concentradas no que o outro diz, mas no ambiente, no contexto, no que se ajusta bem à paisagem. É o que Lacan chamava de imaginário, esta inclinação a fechar o sentido cedo demais, a compreender o outro rápido demais, a nos alienarmos em sua imagem e assim nos fecharmos para sua palavra.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do.

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