Assédio e preconceito afastam mulheres gamers de jogos online
As mulheres gamers são alvo constante de assédio e xingamentos durante a gameplay. Mesmo representando 51,5% dos jogadores brasileiros (PGB 2023), por medo elas acabam se afastando de jogos considerados “tóxicos”, ou criam seus próprios mecanismos para se sentirem seguras. Segundo um estudo de 2023, publicado pela Reach3 Insights em parceria com a Lenovo, 59% das jogadoras costumam esconder seu gênero durante as partidas para evitar assédio.
Para se proteger, muitas ainda evitam jogar online, desligam o chat ou participam de partidas apenas com amigos. O 💥️TechTudo conversou com jogadoras e especialistas sobre a situação enfrentada no universo gamer do Brasil e traz mais pontos a seguir.
🎮 Conheça casos de protagonismo feminino nos esports
1 de 6 59% das jogadoras costumam esconder seu gênero durante as partidas para evitar assédio — Foto: Reprodução/Pexels (Rodnae Productions)59% das jogadoras costumam esconder seu gênero durante as partidas para evitar assédio — Foto: Reprodução/Pexels (Rodnae Productions)
Ariel Ayola (26) é jornalista e publicitária, além de fã de League of Legends e The Legends of Zelda. A sua preferência por jogos é totalmente afetada pelos ataques que já recebeu por ser mulher. “Gosto mais de games casuais não multiplayers, tenho um pouco de receio de jogar com pessoas desconhecidas. Os únicos multiplayers que já joguei são Counter-Strike e LOL”, explica.
Suas experiências não trazem boas memórias. Aos 14 anos, ela jogava Counter-Strike com nome falso e se sentia mais segura dessa forma. No entanto, isso não impediu que ataques acontecessem. “O cara nem era do meu time. Ele começou a ficar bravo por eu ter matado ele algumas vezes no jogo e eu o mandei calar a boca pelo voice (microfone)”, Ariel relata. Ao ser reconhecida como mulher pelo jogador, tudo piorou. “Ele disse até que invadiria minha casa pra me assediar porque era o que eu merecia”.
O mesmo já aconteceu em League of Legends, que Ariel jogava em 2016. Ela sofria xingamentos que a deixavam horrorizada, o que fez com que ela parasse de jogar. As situações vividas por ela não são fatos isolados. 77% das mulheres gamers entrevistadas pela Reach3 Insights experimentaram comportamento impróprio durante um jogo.
A professora de música e idiomas Annebelle Leblanc (29) também já vivenciou preconceito e assédio por ser mulher. “Até em jogos casuais de multiplayer online, como Among Us, já rolou. Só por ‘ter um nome feminino’ uma pessoa, ao invés de jogar, ficou a partida inteira me assediando”, desabafa. 44% das mulheres precisam lidar com “pedidos de relacionamentos não solicitados” durante as partidas.
2 de 6 Em Among Us, os jogadores precisam conversar entre si para descobrir quem é o impostor — Foto: Divulgação/InnerSlothEm Among Us, os jogadores precisam conversar entre si para descobrir quem é o impostor — Foto: Divulgação/InnerSloth
Anne também faz parte de outras minorias por ser uma mulher trans e ter dislexia. Isso aumenta ainda mais os ataques que recebe. Ela já foi vítima de transfobia enquanto jogava. “Já começaram a me tratar no masculino por conta da voz (ao falhar em modular) em salas de Among Us”, desabafa. Modular a voz significa ajustá-la para um tom mais agudo. Este é um mecanismo de Anne para evitar situações transfóbicas.
Por que esses ataques acontecem
Para entender o comportamento da comunidade gamer, o 💥️TechTudo conversou com Dara Coema, pesquisadora na área de games e mestranda em Comunicação na Universidade Federal Fluminense (UFF). Segundo ela, como o foco da produção e divulgação de grandes jogos era voltado em sua maioria para homens cisgênero, heterossexuais, jovens, brancos e financeiramente privilegiados, esse consumidor reconheceu por anos que esse mundo pertencia a ele.
“Não surpreende encontrarmos tantas situações do famoso "", que produz esse sentimento de superioridade, a sensação de que aquela mulher que está ali não pertence a esse espaço ou não se equipara a ele”, explica. “Forma-se uma certa liberdade para tratarem as gamers da forma como temos visto, independente de jogarem bem e terem conhecimento no meio”.
3 de 6 Bobby Kotick é CEO da Activision Blizzard e alvo de denúncias de má conduta em casos de assédio e abuso sexual na empresa — Foto: Reprodução/EurogamerBobby Kotick é CEO da Activision Blizzard e alvo de denúncias de má conduta em casos de assédio e abuso sexual na empresa — Foto: Reprodução/Eurogamer
A pesquisadora ainda ressalta que muito do que reconhecemos como um “comportamento padrão gamer” faz parte de uma cultura aceita e reforçada pela própria indústria. Para ela, a violência estrutural contra mulheres no meio dos games pode ser exemplificada atualmente pelo processo judicial contra a Activision Blizzard (Call of Duty) por assédio sexual, físico e moral na empresa.
Anonimato e falta de punição
Outro fator importante para a manutenção do comportamento tóxico de jogadores contra mulheres são os perfis anônimos. Já se sabe que muitas pessoas se aproveitam de redes sociais para fazer comentários maldosos contra terceiros. Nos jogos não seria diferente. No entanto, as consequências leves e reversíveis ‘compensam’. “Se o usuário for banido por alguns dias após ser denunciado, por exemplo, não é tão grave, ele pode retornar”, explica Dara.
Outro ponto, por sua vez, é o efeito manada influenciado pelo comportamento da própria comunidade. “Se esse mesmo usuário observar a atitude de uma maioria, reconhecer a impunidade ou a falta de repercussão dessas ações, aí mesmo deve ter certeza que pode e talvez até deva fazer isso”, ela conclui.
Ariel concorda com a pesquisadora. “Acho que as denúncias deveriam ser levadas mais a sério e as penalidades mais duras, sabe? Muitas vezes não há penalidades, apenas uma advertência”, desabafa.
4 de 6 É comum que jogos mostrem mulheres hiperssexualizadas, como é o caso da campeã Janna em LOL — Foto: Divulgação/Riot GamesÉ comum que jogos mostrem mulheres hiperssexualizadas, como é o caso da campeã Janna em LOL — Foto: Divulgação/Riot Games
A corda cede para o lado mais fraco
Como consequência desses ataques, as mulheres precisam se adaptar para continuar jogando enquanto pouco é exigido para os agressores de fato. De maneira geral, além de mudarem seus nomes nas plataformas, as mulheres evitam jogar games multiplayer online sem conhecidos.
“Percebi que às vezes para jogar algo online é simplesmente mais fácil mentir, ‘se passar’ por homem para poder jogar em paz, ou seja, optar por jogos sem voz”, explica Annebelle. Certas comunidades já têm famas de tóxicas e, por isso, são evitadas de cara. “Em certos jogos é simplesmente melhor não jogar por ser um ambiente capacitista, misógino e transfóbico”, relata.
A Ariel também já identificou quais games quer manter distantes. “Morro de medo de jogar FPS (Counter-Strike, Call Of Duty, Valorant e outros). Não chego nem perto desses hoje em dia”, ressalta. Outra medida é usar o chat silenciado. “Não vejo nada além do que o meu próprio time fala. Não curto também fazer amizades dentro do jogo, por medo”.
5 de 6 Counter-Strike é um dos jogos de tiro mais famosos da atualidade — Foto: Divulgação/ValveCounter-Strike é um dos jogos de tiro mais famosos da atualidade — Foto: Divulgação/Valve
Tudo isso afeta a sensação de pertencimento dentro dos grupos de jogos, já que muitas gamers limitam a sua diversão para que não sofram ataques. “Nunca mais cheguei perto de um jogo FPS na vida. Morro de vontade de voltar a jogar CS, mas prefiro preservar a saúde mental”, conta Ariel.
Essas consequências chegam também ao cenário competitivo. Dara explica que pro players e streamers mulheres, por exemplo, se sujeitam à uma exposição maior, e consequentemente sofrem com mais episódios de violência. “Isso pode levá-las a evitar determinadas plataformas, jogos e comunidades que não ofereçam um espaço seguro ou um suporte necessário, ou mesmo desencorajar a profissionalização como um todo”, alerta.
Mudança de dentro para fora
Ao começarem a ser vistas como consumidoras potenciais, as mulheres recebem mais atenção e representação na própria indústria. “A verdade é que jogadores pertencentes a comunidades marginalizadas ou identidades não normativas – pessoas não brancas, mulheres, pessoas queer, e outras – sempre existiram, apesar de não receberem a devida atenção”, ressalta Dara.
6 de 6 Aloy é a heroína da franquia Horizon para PS4 e PS5 — Foto: Reprodução/PlayStation BlogAloy é a heroína da franquia Horizon para PS4 e PS5 — Foto: Reprodução/PlayStation Blog
As mulheres resistem em espaços majoritariamente masculinos e exigem mudanças que começam a acontecer principalmente por iniciativas próprias. São exemplos a criação de grupos de jogadoras, campeonatos de esports e times femininos. “Diante da marginalização, elas tomaram providências com as próprias mãos, construindo assim meios de apoio. Esse movimento tem justamente influenciado o mercado, que tem percebido que se não mudar, irá perder essas consumidoras” conclui Dara.
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