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É sabido que as grandes conspirações costumam nascer em salas pequenas. Mas milhares de cientistas sociais no mesmo espaço é certamente uma boa ocasião para intensos debates. No Porto, por estes dias, reúnem-se quatro mil sociólogos e sociólogas, para o Congresso Europeu da sua associação! É muita gente. Perigo ou oportunidade?

Quem faz sociologia é inescapavelmente parte do mundo que estuda. A par dos protocolos de objetivação e dos mecanismos de controlos cruzados do campo, a sociologia é movida por princípios morais que guiam a investigação, como resulta claro na obra das referências fundacionais da disciplina, Karl Marx, Max Weber e Durkheim, mas também na de outras e outros seus contemporâneos, esquecidos pelo cânone que cristalizou aqueles “pais fundadores” da disciplina - como DuBois, ou mulheres como Marianne Weber ou Flora Tristan…

O Congresso, que tem hoje uma maioria de sociólogas, acontece na semana em que os jornais deram conta das novas leis aprovadas no Afeganistão: as mulheres estão proibidas de falar em público (a voz feminina é causadora de vício, alegam os talibãs) e de cantar ou ler em voz alta, mesmo no espaço doméstico. Se dúvidas houvesse, percebemos como nenhum progresso é linear, nenhum tempo histórico é homogéneo. Na abertura do encontro, a socióloga portuguesa Anália Torres situou justamente a batalha contemporânea em torno do género, tema que se tem tornado central na agenda das extrema-direitas em todo o mundo, obcecadas contra os “estudos de género”, violentamente regressivas em matérias como o aborto, com uma agenda patriarcal como contraponto à necessária reinvenção da masculinidade.

A acompanhá-la, Michael Burawoy, o professor de Berkeley que se tornou mundialmente reconhecido pela defesa de uma “sociologia pública” (crítica e capaz de transcender o campo da academia nos seus públicos e interlocutores) e pelos estudos etnográficos nas minas da Zâmbia, ou nas fábricas dos EUA, da Hungria e da Rússia em que trabalhou. E trabalhou mesmo: doze meses como operário em Chicago (experiência a partir da qual escreveu, em 1979, um estudo marcante sobre os regimes de produção e a fabricação do consentimento no capitalismo); doze meses interpolados, em meados de 1980, no coração industrial da Hungria como operário da siderurgia Lenine (o que lhe permitiu estudar as “políticas da produção” no bloco soviético); depois em Moscovo… Burawoy, que presidiu à Associação Americana e à Associação Internacional de Sociologia, abriu o encontro europeu com uma análise sobre o que está a acontecer em Gaza.

Os pontos de partida de Burawoy são dois. A história comparada - o que implica, como gesto epistemológico, a contestação de que Israel constituiria uma realidade única e incomparável - cotejando a Palestina e a África do Sul. E a caracterização do sionismo como uma forma de “colonialismo de ocupação” (settler colonialism), o que significa questionar muitos dos mitos fundadores do Estado de Israel. Nisto, o sociólogo americano não está sozinho. Uma longa linhagem de cientistas sociais, nomeadamente israelitas, tem olhado Israel e o seu projeto a partir dessa grelha. À semelhança do que aconteceu na origem dos EUA, da Austrália ou da Irlanda do Norte, também nos territórios da Palestina há uma população conquistadora que, através da força das armas, se apropria da terra, do trabalho e dos recursos de uma população subjugada.

Patrick Wolfe, antropólogo australiano e referência maior do campo de estudos do colonialismo de ocupação já o tinha feito. O historiador israelita Ilan Pappé também, chamando a atenção para o quanto a criação da comunidade de colonos israelitas num local onde já moravam outras pessoas recorreu a justificações religiosas e culturais para um plano intencional de limpeza étnica através da colonização de terras e da eliminação dos nativos do país, com a expulsão, logo em 1948, de metade da população da Palestina, a destruição das aldeias e a desarabização das cidades. Essa eliminação, que está na origem do estado de Israel, atinge agora proporções inimagináveis com o genocídio em Gaza. A resistência palestiniana é por isso, insiste Pappé, não apenas uma luta de libertação anticolonial mas uma luta contra a eliminação.

O ponto de Burawoy, todavia, não é apenas a constatação de homologias entre a Palestina e a África do Sul do apartheid. É também compreender as razões das diferenças entre os dois casos. Se na África do Sul o apartheid era instrumento da exploração do trabalho mais do que da expropriação de terra, o projeto do governo israelita é de expropriação territorial e extermínio, o que abre menos espaço para concessões e para uma solução negociada, como a que pôs fim ao apartheid sul-africano. Por outro lado, a mobilização contra aquele apartheid na década de 1980 teve um impacto brutal em todo o mundo, tendo conseguido mudar a perceção norte-americana do Congresso Nacional Africano e o posicionamento dos EUA sobre o regime segregacionista. Relativamente à Palestina e a Gaza é um mundo de diferenças. Observem-se as eleições americanas. Trump identifica-se com a violência de colonos e a desumanização dos palestinos. E na Convenção Democrata da passada semana, abstratos apelos ao cessar-fogo conviveram com a censura das vozes palestinianas na reunião, como têm convivido com o contínuo financiamento do genocídio pelo governo sob liderança democrata, acompanhado da enganadora invocação, por alguns dirigentes do partido, de que o extermínio em curso é ainda a reação defensiva aos ataques do Hamas.

E no entanto, como lembra Burawoy, não faz nenhum sentido que a forma mais cristalina de colonialismo - o de ocupação por colonos - possa sobreviver em Israel quando vivemos num mundo pós-colonial, mesmo com os seus contraditórios e pesados legados.

Em muitas universidades do mundo, um potente movimento de estudantes, professores e investigadores tem erguido vozes pelo cessar-fogo em Gaza, pelo desinvestimento em Israel e pela liberdade académica, designadamente no que toca à análise sobre o sionismo. Foi com esse exercício de liberdade que se abriu o Congresso no Porto. Sinal de vitalidade de uma sociologia que, em vez de fugir do mundo, o habita plenamente.

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