Quantas décadas até mapearmos toda a extensão do córtex cerebral?
"Não seriam essas as borboletas da alma que um dia explicarão a consciência humana?" –disse o espanhol Santiago Ramon y Cajal ao descobrir o neurônio, no comecinho do século 20.
Antes dele, as tentativas de visualizar ao microscópio as células do sistema nervoso central haviam fracassado. Os corantes usuais, empregados para tingir células de outros tecidos, não impregnavam as do cérebro; nas imagens apareciam apenas espaços vazios.
Quando Cajal experimentou corá-las com dicromato de potássio e nitrato de prata, no entanto, enxergou células pretas destacadas contra um fundo transparente. Tinham a forma de aranhas que lançavam tentáculos longos em todas as direções: eram os neurônios.
A curiosidade levou-o mais longe. Demonstrou que os neurônios "entravam em contato uns com os outros sem entrar em contato". Faziam-no através de espaços de dimensões infinitesimais —as sinapses—, por meio de estímulos químicos e elétricos. Escreveu então: "A habilidade dos neurônios crescerem nos adultos e seu poder de criar novas conexões podem explicar o aprendizado".
Estavam lançadas as bases da teoria sináptica da memória, descoberta que lhe deu o Nobel de Fisiologia e Medicina de 1906. Pena Cajal ter morrido em 1934, aos 82 anos. Estivesse vivo, teria lido o artigo da revista Science publicado no último mês de maio.
Neurocientistas da Universidade Harvard, em trabalho com colegas do Google Research, da Califórnia, mapearam um fragmento de 1 centímetro cúbico do tecido cerebral de uma mulher de 45 anos submetida a cirurgia para tratamento de quadro de epilepsia. Essa amostra corresponde a uma parte insignificante do volume total do cérebro.
O fragmento foi retirado do córtex, área cerebral conhecida como massa cinzenta, encarregada de controlar nossas funções cognitivas mais elaboradas: resolução de problemas, aprendizado e processamento das informações que chegam através dos sentidos, entre outras. Nesse ínfimo centímetro cúbico de tecido, o grupo de Harvard cortou 5.000 lâminas de 34 nanômetros (a milionésima parte do milímetro) cada uma, espessura adequada para a observação nos microscópios eletrônicos.
Com o emprego de modelos de inteligência artificial desenvolvidos pelos cientistas do Google, as imagens obtidas pela microscopia passaram por um processamento capaz de agrupá-las e reconstruí-las em 3D.
Disponíveis na internet, essas imagens são dignas das galerias de arte mais sofisticadas. Exibem em cores os corpos dos neurônios, distribuídos num emaranhado de circuitos formados por prolongamentos (dendritos e axônios) que caminham em todas as direções para criar uma rede tridimensional de altíssima complexidade.
Na amostra pesquisada, foram encontrados 57 mil neurônios, que formaram 150 milhões de sinapses com os vizinhos. A circuitaria resultante é capaz de incorporar 1,4 petabyte de dados. Para dar noção de grandeza: em 50 petabytes pode ser armazenado tudo o que a humanidade escreveu na história, em todas as línguas.
A imensidão de dados assim gerados vai permitir que a comunidade científica internacional possa ter acesso à intimidade da microcircuitaria de neurônios existente no córtex cerebral.
O cérebro humano é considerado a estrutura mais complexa do universo. Nos anos 1990, assisti a uma palestra de um neurocientista que o considerava mais complexo até do que o próprio Universo. Na época achei exagero.
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Talvez não fosse. Se numa amostra de uma área que ocupa 1 milionésimo do córtex cerebral existem mais de cem milhões de sinapses, através das quais os neurônios interagem, trocando sinais elétricos e neurotransmissores que serão responsáveis por todas as funções fisiológicas do organismo humano, pela forma de entendermos o mundo ao nosso redor e por tudo o que pensamos, imagine a complexidade do cérebro inteiro.
Quantas décadas levaremos para mapear toda a extensão do córtex cerebral? Quantos petabytes de dados serão gerados? A tecnologia de inteligência artificial será capaz de avançar na velocidade exigida para interpretá-los?
As imagens da rede de sinapses publicadas no artigo da Science mostram como é precário o conhecimento atual dos distúrbios fisiológicos, dos transtornos psiquiátricos, das voltas que o pensamento dá e dos males da alma que nos afligem pela vida inteira.
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