Correr para pausar outros corres

O corre não tem segredo. Quando penso nele, sei que o quer de mim: pressa. Seja qual for o contexto —e vários podem ser, a mensagem não faz curva. É o corre para resolver algum problema urgente que necessita de velocidade, de uma rapidez incomum e impaciente que só pode ser acompanhada pela agilidade dos que sabem o que é operar no modo sobrevivência. O corre paga, mas também cobra. Tira o sono, maltrata o corpo e cansa a mente.

Há quem faça o corre do trabalho, da escola, da faculdade, também o corre para ajudar amigos, levar um familiar ao hospital, levantar dinheiro rápido fazendo bico ou, nos mais infelizes casos, levar o dinheiro do outro rápido pelo caminho do furto ou roubo. São todos corres reais e, consequentemente, complexos, ainda que imersos na suposta mesmice dos dias comuns.

Certa vez, exausto depois de mais uma semana de corre e sem conseguir imaginar algo que pudesse me fazer lidar com a carga de estresse, busquei nas memórias primordiais algum mistério da infância que pudesse ser útil na adultidade. Tal qual um bom texto cuja introdução dialoga com a conclusão e ambas, numa dialética conversa para sintetizar o conteúdo, acham os caminhos para amarrar o saber, veio-me o verbo para a tudo dar origem e ação: correr.

Com as pontas dos pés, parecia ser possível engatar as marchas do corpo mirrado. Um impulso, o som desaparecendo, o mundo passando mais rápido e o coração impondo ritmo e limite. A respiração se tornava o principal —e talvez único— pensamento. Ora mais profunda, ora mais acelerada, mas sempre constante em mim.

Tudo era feito correndo e, por vezes, gerava bronca. "Pare de correr, menino!", "Vai cair desse jeito!", "Não entre correndo em casa!". A sensação de fluir como ar era boa, igual a de gastar energia acumulada e sentir que os pensamentos agitados e o corpo tenso faziam sua síntese e escreviam um novo texto para o corre. Um corre diferente.

Começar a correr na quebrada deu início a um período de exercício físico e mental. Com objetivo de tratar questões psicológicas, também foi preciso aprender a não negligenciar as físicas. Se praticar tal atividade permitia aliviar dores do espírito, as dos músculos precisavam ser levadas a sério. Não adianta substituir parte de uma angústia pela parte de outra e, sabemos, sentir dor física pode ser tão ruim quanto sentir a mental. Rigor, disciplina e, principalmente, o básico autocuidado que tendemos a perder por conta das costumeiras tarefas impositivas. No esforço, pouco há de prazer. Há de benefícios.

Costumo dizer que quando saio para correr, retiro-me do mundo mesmo ao ar livre. Enquanto há movimento, não há "eu" acessível o bastante para que me alcancem os olhares, vozes e problemas. Existe certa solitude.

Tudo passa pelas laterais de minha percepção e fica lá, aguardando até que eu termine meu trajeto. Ligo-me, por outro lado, aos joelhos, à redescoberta respiração, ao desatrofiar dos músculos e tear dos olhos que, durante o corre, miram as mais entrópicas ideias cujo caráter caótico reflete o alívio do livre pensar a dar e desdar nós nas preocupações. O corre, desta vez, tem pressa de não chegar, mas de ir.

Dedicar parte do tempo a este amarrar constante entre início e fim da "calendariada" rotina revela suas dificuldades. Manter o ânimo precisa ser maior do que os cansaços já sabidos. Tratando-se da nossa gente de quebrada, é mais complicado. Contudo, passam por mim pessoas de diferentes idades, corpos, e corres, coletivamente isoladas em suas razões para ali estarem —e, num piscar de olhos, não mais. Como diz a jornalista e meia-maratonista Esmeralda Angélica, são "corredores reais".

Correr para pausar outros corres. Correr como forma de desacelerar a pressa da contemporaneidade. Correr com o corpo para desacelerar a mente e correr com a mente por outros caminhos enquanto o corpo percorre os de sempre: aquela avenida, aquele parque, aquele espaço em que, mais uma vez, amarramos começo e fim de nossos cotidianos textos. Não tem segredo.

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