O tabu das mulheres estupradas por seus maridos: Ele queria repetir o que via nos filmes pornôs

Atenção: este texto tem descrições de violência e de atos sexuais não consentidos

Quando a arquiteta Ingrid Santa Rita, de 34 anos, participante do reality show da Netflix Casamento às Cegas, afirmou no programa que foi estuprada pelo marido, o personal trainer Leandro Marçal, de 32 anos, ela deu rosto para um tipo de abuso que é muito mais comum do que as pessoas imaginam - e que continua sendo um tabu mesmo com o aumento do esclarecimento sobre assédio sexual e violência contra a mulher.

Segundo pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Datafolha de 2023, 21,1% das mulheres brasileiras com mais de 16 anos já foram forçadas por um parceiro íntimo a manter relações sexuais contra sua vontade.

Não há dados sobre quantos desses casos foram denunciados.

O estupro por um parceiro íntimo é um tipo de violência subnotificado, ou seja, que acontece muito mais do que é reportado, segundo a promotora Silvia Chakian, da Promotoria Especializada de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar do Ministério Público de São Paulo.

"Apesar de termos evoluído muito nos últimos anos, ampliando a conscientização sobre direitos, muitas mulheres não conseguem sequer entender que o sexo não consentido no casamento é um crime de estupro", diz Chakian.

Ingrid Santa Rita disse que não queria aceitar e "não queria usar a palavra estupro". Em um vídeo no Instagram, ela contou que acordou diversas vezes durante a noite com o marido praticando atos sexuais com ela.

Inicialmente, Marçal pediu desculpas publicamente à ex-mulher por "problemas sexuais", mas depois publicou uma nota negando que tenha cometido qualquer crime ou praticado qualquer dos atos dos quais sua ex-mulher o acusou. "São acusações seríssimas, sem cabimento algum. E eu posso provar isso", disse ele.

A reportagem tentou contato com a defesa de Marçal e não teve sucesso. O caso está sendo investigado pela Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) de Osasco, segundo a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo.

A BBC News Brasil ouviu oito mulheres que relataram ter sido vítimas de estupro no casamento ou por um namorado.

Embora cada situação seja muito diferente uma da outra e as mulheres tenham diferentes idades, profissões e classes sociais, todas relataram algo em comum: demoraram para entender e aceitar que o que aconteceu com elas foi um estupro.

Para a pedagoga Camila*, de 43 anos, a percepção só veio depois do divórcio.

"Eu me casei com 18 anos, meu marido era seis anos mais velho e eu estava muito apaixonada. Os abusos começaram de maneira sutil, depois foram ficando mais intensos. Eu achava que o problema era comigo por negar [sexo em certos momentos ou de certas formas], que era minha obrigação, que eu estava exagerando e interpretando as coisas de maneira distorcida", diz.

O que configura um estupro no casamento?

Além das nuances de um relacionamento íntimo, a dificuldade em reconhecer situações de abuso também é resultado do tabu e de séculos de uma mentalidade de que a mulher é propriedade do marido, de que o sexo é uma obrigação e não algo no qual ela também deve ter prazer, afirma Regina Célia, presidente do Instituto Maria da Penha, organização dedicada ao combate à violência contra a mulher.

Mas qualquer forma de contato sexual, físico ou verbal, com uso de "manipulação, intimidação, coerção, força, chantagem, suborno, ameaça ou qualquer outro mecanismo que anule o limite da vontade pessoal" é considerado uma violência sexual, segundo a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher.

E isso vale inclusive para situações com parceiros íntimos, que sejam maridos, namorados ou parceiros casuais, explica Célia.

"Não é porque você está em um relacionamento íntimo que o consentimento é automático e presente a todo momento", diz Célia.

Casamento não significa cheque em branco para a prática de atos sexuais sem que haja consentimento, afirma Chakian.

"A pessoa deve estar em condições de consentir livremente. Consentimento válido pressupõe temporariedade, podendo ser revogado a qualquer tempo."

Ou seja, a mulher não tem a obrigação de continuar uma vez que o casal começou as preliminares, como beijos ou carícias. A violência sexual pode envolver forçar a penetração vaginal quando a mulher não está excitada, não está lubrificada ou está sentindo dores e incômodos.

Forçar que o sexo seja sem proteção ou retirar a camisinha durante o ato também é uma forma de violência sexual.

Além disso, "consentir com um ato sexual, por exemplo, o sexo vaginal, não significa autorização para todos os demais", explica Chakian.

Célia conta que muitos casos atendidos no Instituto Maria da Penha são de parceiros forçando práticas sexuais que as mulheres não gostam.

Isso pode envolver sexo anal, sexo oral, enforcamento, tapas e outras formas de violência, como forçar posições, obrigar a mulher a assistir filmes pornográficos sem que ela tenha o desejo ou interesse, ou qualquer prática com a qual a mulher não tenha concordado ou tenha cedido a intimidação, manipulação ou ameaça.

"A gente ouve casos em que o homem diz: você não precisa nem mexer, fica quietinha que eu faço tudo. Há casos de homens que forçam o sexo e ainda depois mandam a mulher cozinhar, ou fazer alguma outra tarefa. Elas se sentem humilhadas, desrespeitadas, mas não entendem que é um abuso sexual. Que é algo que elas poderiam denunciar", afirma Célia.

Segundo a presidente do Instituto Maria da Penha, muitas vezes as mulheres cedem à pressão porque, se não cederem, a violência será ainda maior. Ou seja, em casos onde há violência doméstica, não permitir um avanço sexual muitas vezes é o gatilho para que a mulher seja agredida fisicamente. Por isso, segundo ela, muitas acabam "concordando" para não ser vítima de ainda mais violência.

Esse consentimento dado sob intimidação não é válido, diz Chakian, e o ato sexual pode ser considerado um estupro.

"O consentimento precisa ser livre de qualquer tipo de coação, ameaça, temor ou fraude."

'Ele era outra pessoa quando bebia'

Dora*, hoje com 63 anos, conta que foi vítima de violência doméstica durante boa parte dos seus 38 anos de casamento e que incontáveis vezes cedeu aos avanços sexuais do marido por medo de apanhar.

Alcoólatra, o marido batia nela quando bebia - então era nessas situações que ela não negava o sexo por medo.

"Muitas vezes quando começava (o ato sexual) já bêbado, ele nem conseguia terminar. Ele mal tocava em mim e já desmaiava. Então eu não negava, porque sabia que ele não faria muita coisa e isso era melhor do que apanhar", diz ela, que conta que o marido era "trabalhador" e sabia ser "amoroso e dedicado", o que a deixava muito confusa e esperançosa de que as coisas fossem mudar.

"Eu achava que não era ele, era a bebida, e ele sempre prometia parar. Mas nunca parou", conta Dora, que ficou viúva aos 55 anos.

Ela diz que sentiu prazer no sexo pouquíssimas vezes ao longo de seus 38 anos de casamento.

Conta que não recebeu nenhuma educação sexual antes do casamento, então acreditava que era normal a mulher ter dor e achava que era sua obrigação satisfazer o marido.

Só entendeu que foi vítima de abuso após a morte do marido, com ajuda de uma das filhas.

"Eu amava meu pai, mas nunca perdoei o que ele fez com a minha mãe", diz Laura*, filha de Dora. "Ele nunca encostou em mim, mas eu vivia com medo de um dia chegar em casa e encontrar minha mãe morta", diz ela, que se emociona com o relato. "Sei que parece horrível, mas quando ele morreu, foi a melhor coisa que aconteceu pra ela (a mãe)".

'Ele era meu príncipe encantado'

Nem sempre o estupro dentro do casamento acontece em um contexto onde há violência doméstica física de maneira mais ampla.

Das oito mulheres entrevistadas pela BBC News Brasil, duas relataram sofrer violência física fora do contexto sexual, e as outras seis relataram sofrer violência psicológica.

No caso da pedagoga Camila, não houve violência física fora do contexto sexual, e o abuso começou de maneira sutil.

"Eu sempre tive dores com a penetração. No começo do casamento, como eu estava muito apaixonada, a lubrificação acontecia e eu ignorava as dores. Eu achava que o problema era comigo, eu tentava contornar. Mas quando nosso casamento se deteriorou e isso se tornou uma obrigação, eu comecei a negar quando não estava afim", conta ela.

"No início ele bufava, virava o olho, fazia cara de chateado, ficava uma situação desconfortável entre a gente... 'Poxa, já passou uma semana', então eu me forçava a tentar. Depois ele começou a manipulação mais intensa, dizia que eu seria responsável por ele querer ficar com outras mulheres, dizia que muitos homens procuravam fora do casamento. Quando eu não estava afim de penetração, eu oferecia outras formas de troca de prazer, mas penetração era a única que ele queria. Então, eu cedia."

Camila conta que o marido muitas vezes percebia que ela estava com muita dor e, em vez de parar o ato, perguntava: "Posso terminar?".

"Chegamos no ponto absurdo de usar gel anestésico — ele era médico e tinha acesso a medicamentos de forma ilimitada — porque a penetração doía. Assim eu não sentia nada, e ele se satisfazia da forma que queria", conta ela.

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