Encarando o abismo

"Se Deus Todo-Poderoso aparecer e disser ‘Joe, desista da candidatura’, eu desistiria." Mas, como concluiu Biden, obviamente "Deus Todo-Poderoso não descerá até aqui". Tradução: sua candidatura à reeleição não pertence ao domínio da política, mas à esfera divina. A frase, por si mesma, deveria desqualificá-lo à Presidência. Paradoxalmente, produziu o desejado efeito de congelar o Partido Democrata, resignando suas principais lideranças a aceitar uma marcha sombria rumo à derrota.

Qualquer partido tem, em condições normais, o direito de perder com o candidato que quiser. Só que, segundo os democratas, a próxima eleição nos EUA é tudo menos um pleito normal: o triunfo de Trump representaria uma ameaça existencial à democracia americana. Ao nomear o candidato menos capaz de vencer, e ao conservá-lo por medo de ousar, os democratas traem o princípio inviolável pelo qual juram combater.

Biden tem sua culpa. O líder idoso que, há quatro anos, declarou-se um "presidente de transição", bebeu no cálice da húbris, anunciou-se como única figura capaz de bater Trump e engajou-se na batalha da reeleição. Seu partido, porém, renunciou coletivamente a fazer política, coroando-o em prévias sem competição genuína.

Sabia-se, bem antes do debate fatídico, sobre o declínio cognitivo do presidente. As sondagens indicavam que 67% dos eleitores duvidavam da sua capacidade de cumprir mais um mandato. Mesmo assim, o partido insistiu, fechando-se numa jaula de negacionismo. A culpa principal cabe aos democratas.

Na sua febre de orgulho e arrogância, Biden invoca Deus, mas pratica a muito terrena política da chantagem. Depois de proclamar sua descrença nas pesquisas e atribuir seus percalços de imagem à maldita imprensa, partiu para o tudo ou nada, instigando os partidários céticos a desafiá-lo na Convenção.

O golpe baixo de um candidato ungido, que controla os delegados selecionados em prévias simbólicas, veicula a ameaça de dividir o partido —e, assim, estender um tapete vermelho para Trump nas escadarias da Casa Branca.

O erro do passado pesa como rocha sobre o presente. Seguir com Biden implica admitir a derrota cada vez mais provável, mas contestar sua candidatura significa deflagrar uma guerra civil partidária que produziria a derrota certa. Trump converteu-se na carta mágica de Biden: um seguro contra sua própria fragilidade.

A força de Trump é uma lenda urbana assentada na dinâmica singular do sistema bipartidário e na captura do Partido Republicano pelo movimento extremista MAGA. Ainda hoje, sob o impacto do debate catastrófico, o chefe do MAGA não consegue ultrapassar 46% das intenções de voto, uma dianteira de meros 3 pontos percentuais. Biden justifica sua candidatura alegando ser o único líder com o potencial de bater o destruidor de mundos. A verdade é o exato contrário: Trump deve seu favoritismo à percepção geral de que Biden perdeu a guerra contra o proverbial inimigo invencível.

Diz-se, com razão, que a ascensão do chefe do MAGA ao comando do Partido Republicano reflete a decadência da democracia americana. Minimiza-se, porém, o triste papel desempenhado pelo Partido Democrata. Hipnotizados pelas políticas identitárias, os democratas substituíram o povo por um catálogo de minorias, perdendo seu tradicional predomínio entre os eleitores da baixa classe média e, ainda, sua hegemonia sobre largas fatias do eleitorado hispânico. No ciclo eleitoral em curso, acrescentam a isso uma duplicidade fatal, imitando o odioso inimigo.

Acusa-se Trump de ser candidato de si mesmo –ou seja, de sua obsessão por vingança e retribuição. Mas o que é o Biden de hoje, senão o candidato de sua própria húbris? "Aquele que combate monstros precisa acautelar-se para não tornar-se também um monstro". Olhe para o abismo, e o abismo olhará para você, ensinou Nietzsche.

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