Boaventura Sousa Santos. Divulgada terceira carta sobre declara& ões do acad& mico escrita por v
"Sem assumir a responsabilidade por atos concretos de abuso cometidos, não há autocrítica" é o título da terceira carta escrita pelo coletivo de mulheres "que sofreu diferentes tipos de violência, resultante do padrão de abuso de poder naturalizado nas equipas de trabalho lideradas por Boaventura de Sousa Santos e percebido como inevitável pelas pessoas que ocuparam lugares de autoridade no CES [Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra] durante muitos anos", sendo que o mesmo é representado pela advogada Daniela Félix.
"Desde que começámos a partilha das nossas reflexões, o número de pessoas aumentou. Temos estado em contacto com outras mulheres, que viveram histórias parecidas com a nossa. As situações de abuso experienciadas não se limitam a momentos inconvenientes promovidos por um homem incapaz de entender que o mundo mudou. É muito difícil acreditar que um sociólogo profissional, internacionalmente considerado um dos maiores intelectuais de esquerda, não consiga entender as mudanças da sociedade e adaptar-se a elas", redigem, sendo importante lembrar que o professor disse assumir o compromisso de ser cada vez mais vigilante, no sentido de evitar "mal estar ou opressão", na sequência das acusações de assédio sexual.
Num artigo de opinião publicado no Expresso, o sociólogo conta que nasceu em 1940 e que é de uma geração “em que comportamentos inapropriados, se não mesmo machistas, quer se trate da convivência ou da linguagem, eram aceites pela sociedade". "Não é sempre fácil perceber conscientemente que se está a ter comportamentos que antigamente não eram vistos como inapropriados. Não se trata de justificar comportamentos passados, apenas de verificar algo que pode acontecer e redundar em ações pouco construtivas. Reconheço que em determinados momentos posso ter sido protagonista de alguns desses comportamentos. Nessa medida, lamento que algumas pessoas possam ter sofrido ou sentido desconforto e por isso lhes devo uma retratação", escreveu igualmente.
“Este meu reconhecimento de modo algum implica que eu assuma a prática de atos graves que me têm vindo a ser imputados e não deixarei nunca de defender a dignidade e a integridade que fui construindo ao longo de mais de 50 anos de esforço e dedicação", continua Boaventura de Sousa Santos, acrescentando que não poderá "senão continuar a dedicar todos os esforços, para aprofundar a promoção de uma cultura institucional e interpessoal de prevenção, deteção, condenação e eliminação de comportamentos machistas nas suas mais diversas manifestações".
"Os intelectuais que, como eu, reconheceram há muito que uma das dimensões da dominação nas sociedades contemporâneas é o heteropatriarcado, têm uma obrigação especial de vigilância, não só epistemológica como também prática, emocional e interpessoal, de não cair em contradição entre o que defendem teoricamente e as suas atuações concretas nas relações interpessoais e institucionais", escreve o também investigador. Boaventura Santos defende que, "enquanto a cultura feminista não estiver plenamente consolidada, deve ter-se presente que, na esmagadora maioria dos casos, as mulheres não têm encontrado instrumentos institucionais e comunicacionais adequados para apresentar as suas queixas, ver reconhecido o seu sofrimento injusto e obter a reparação que for considerada adequada".
"Mesmo com todas as condições e o poder que Boaventura teve sempre à disposição, mesmo que seus estudos tenham sempre chamado a atenção para o patriarcado como forma de opressão, Boaventura ignorou o que escreveu e não se adequou às exigências de um mundo menos opressivo. Seu comportamento com as equipas, colegas de trabalho, estudantes e orientandas não foi reflexo cultural dos tempos, mas uma escolha consciente. As nossas experiências permitem-nos afirmar que as contradições evidentes entre a teoria de Boaventura de Sousa Santos e as relações de poder normalizadas na sua cultura de trabalho nunca puderam ser problematizadas, porque manter as hierarquias, com seus padrões de exploração e abuso, garantia-lhe vantagens evidentes de que não estava disposto a abdicar", salientam as vítimas.
"O Boaventura que agora faz uma autocrítica admite que, no seio da cultura de relações desiguais que promoveu, foi altamente privilegiado? Que privilégios reconhece? Que prejuízos e danos causou às mulheres com quem teve uma relação laboral ou de privilégio numa hierarquia académica?", perguntam. "Uma autocrítica genérica não recompõe danos, nem supera desigualdades. É preciso assumir responsabilidades e fazê-lo de forma concreta. O nosso Coletivo está focado em pressionar a constituição de uma comissão centrada na proteção das vítimas e não na defesa dos agressores. Esse é o nosso objetivo. Não queremos apelar ao cancelamento, nem o desejamos, queremos a apuração íntegra dos fatos, o respeito pelos direitos das vítimas e pelas suas histórias de dor e sofrimento. Queremos justiça!", exclamam. "A necessária investigação dos casos tem que assegurar um espaço em que as vítimas possam testemunhar sem medo de retaliações. Sabemos que o poder está desigualmente distribuído e é por isso que muitas mulheres são silenciadas. É imprescindível que a Comissão seja instaurada e que a absoluta independência da Comissão em relação ao CES seja garantida".
Recorde-se que o CES decidiu mesmo abrir um inquérito no contexto da publicação de ‘As paredes falaram quando mais ninguém o fez’ na obra 'Má Conduta Sexual na Academia', da autoria das investigadoras Catarina Laranjeiro, Lieselotte Viaene e Mya Nadya. Um dos casos diz respeito a uma investigadora brasileira - que agora se sabe que é Isabella Gonçalves - na qual Boaventura Sousa Santos terá tocado no joelho e convidado a "aprofundar a relação", tendo-a colocado de parte quando esta recusou os seus supostos avanços. O professor, em 2014, tinha mais de 70 anos e, a aluna, menos de 30. O toque não terá acontecido na universidade, mas sim em casa de Boaventura Sousa Santos, sendo que este teria acabado de aceitar orientar um trabalho da investigadora.
"Desde a primeira carta que endereçamos ao CES, muito embora tenhamos obtido uma resposta célere e indicando preocupação em garantir os direitos das vítimas, nada se alterou. O que temos visto é Boaventura a usar o poder que tem para garantir tempo de antena e veicular à exaustão a sua versão dos factos, enquanto nós aguardamos e torcemos para que os procedimentos do CES sejam escorreitos e garantam que os nossos direitos serão respeitados e que seremos acolhidas num contexto seguro para apresentarmos as nossas histórias, juntamente com as evidências que estamos reunindo. É, por isso, preocupante que as notícias que chegam ao nosso conhecimento sobre a Comissão venham da comunicação social e nos gerem insegurança sobre como de facto irá funcionar", frisam as vítimas. "Em dado momento, há referência de que a Comissão será composta por um elemento do CES e duas pessoas externas. Em outro momento, há referência de que a Comissão será totalmente independente".
"O nosso segundo conjunto de perguntas é: Quando serão conhecidos do público os termos de funcionamento da Comissão (seu mandato, garantia de autonomia e funcionamento independente, objetivos, regras éticas que está obrigada a cumprir, regras de sigilo que irá seguir, regras a serem seguidas pelo CES para seleção das pessoas)? O CES pretende apresentar um conjunto mínimo de compromissos públicos sobre a Comissão e seu funcionamento e algum cronograma que assegure uma seleção criteriosa de profissionais e garanta quando iniciarão e como serão conduzidos os trabalhos? A resposta que Boaventura de Sousa Santos fez circular em reação às acusações da ativista indígena Mapuche Moira Millan não nos convenceu", deixam claro, acrescentando que "não deixa de ser surpreendente ver como Boaventura, um intelectual ativista de causas progressistas, entre elas o feminismo, seguiu à risca as estratégias de desmoralização das vítimas e o argumento da falta de denúncia quando as violências ocorreram no contexto de uma estrutura em que ele detinha um altíssimo poder hierárquico e alta influência sobre a carreira e o universo de trabalho ou ativismo das suas vítimas".
"O terceiro conjunto de perguntas é novamente dirigido a Boaventura: Os atos inapropriados, que atribui à cultura, e não a si mesmo, foram cometidos contra quem? Dizem respeito a que tipo de situações: assédio moral ou assédio sexual ou ambos? Que medidas Boaventura tomou ou pretende tomar para reparar as vítimas dos seus atos lesivos? Ou está a falar apenas de atos inapropriados inofensivos que não trouxeram danos ou sofrimento a ninguém? Se não trouxeram danos ou sofrimento, porquê a necessidade de fazer a autocrítica?", questionam, clarificando que "as respostas precisam ser concretas". "Temos nossas histórias para exigir verdadeira responsabilização. Sabemos que o que sofremos não foram situações inofensivas de um professor que ficou parado no tempo e não se apercebeu que o mundo andou. Estamos falando de um padrão sistemático de abusos que foi reproduzido com diferentes mulheres, em situações diversas".
"Enquanto o CES não constituir a prometida comissão de investigação é Boaventura quem fica a ganhar, porque tem poder para controlar a narrativa. Enquanto ele prepara a sua comunicação de crise, sem reconhecer uma única falha concreta, as nossas carreiras e nossas vidas continuam abaladas, sem um fim à vista. A desigualdade continua a pesar sobre nós e as nossas cartas não são publicadas à mesma velocidade e no mesmo número de meios de comunicação social. Continuamos aqui a reviver os traumas e contamos apenas umas com as outras. A nossa cura ainda está por fazer", realçam na missiva, sendo que é de lembrar que a segunda carta aberta do coletivo de mulheres vítimas de assédio, em resposta aos argumentos apresentados por Boaventura Sousa Santos na sua defesa pública, tinha como objetivo primordial "prestar solidariedade" à ativista Moira Millán, na medida em que estas mulheres reconhecem "o padrão dos assédios" e acreditam no mesmo.
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