Direito de imagem x liberdade individual: o que dizem juristas sobre tatuar imagem de criança sem autorização

Tatuador usa foto de menino sem autorização — Foto: Reprodução 1 de 4 Tatuador usa foto de menino sem autorização — Foto: Reprodução

Tatuador usa foto de menino sem autorização — Foto: Reprodução

A foto de um menino negro de 4 anos que foi usada por um tatuador de São Paulo durante a convenção de tatuagem "Tatto Week", em outubro deste ano, ganhou repercussão nas redes sociais depois que a mãe da criança denunciou que a imagem não teve autorização dos pais nem do fotógrafo.

Ao 💥️g1, Daniele de Oliveira Cantanhede, mais conhecida como Preta Lagbara, afirmou que está em busca do homem que foi tatuado para que seja feita a remoção. "Quero que ele remova a imagem, cubra ela. Não posso aceitar que uma pessoa desconhecida fique com a cara do meu filho na pele", disse na última quinta-feira (1º).

Preta procurou um advogado e vai entrar com ação por danos morais. O tatuador Neto Coutinho pediu desculpas para a família e quer resolver a situação de forma pacífica, segundo seu advogado de defesa, Gabriel Rodrigues.

Mas o que diz a lei sobre o direito de imagem de crianças em tatuagens? A remoção pode ser exigida? O 💥️g1 ouviu juristas sobre o caso.

Veja abaixo as principais considerações feitas pelos juristas:

Segundo o advogado Ariel de Castro Alves, que é integrante do Instituto Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, tatuar o rosto de uma criança sem comunicar a família é exploração da imagem do menor, o que infringe o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

"No artigo 15 do ECA, uma criança e um adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis. Portanto, houve desrespeito do direito à dignidade e ao respeito. A imagem foi usada desconsiderando a criança como um sujeito de direitos."

De acordo com Ariel, o artigo 18 do ECA consiste também em ressaltar que é dever de todos "velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor".

"O ECA garante a preservação da imagem também e que a criança não seja submetida a tratamento vexatório. Então, a mãe do menino que foi tatuado pode entrar com ação de indenização e reparação de danos pelo uso ilícito e ilegal da imagem do filho com base no ECA e no Código Civil para que o tatuador e o tatuado retirem a tatuagem em razão do direito de preservação da imagem do filho dela, que não pode ser utilizada por quem quiser e da forma que quiser."

Ariel também citou que o artigo 227 da Constituição Federal prevê que os direitos de crianças e adolescentes têm sempre prioridade absoluta e que as crianças e os adolescentes devem receber proteção especial e integral.

"Mas deve ocorrer uma batalha judicial que pode chegar ao STF. Ao final, pelos recursos, o STF pode e deve declarar a prevalência do direito da criança neste caso", disse.

De acordo com Antônio Carlos Morato, professor da Faculdade de Direito na Universidade de São Paulo (USP), independentemente da idade, existe a proteção à imagem na Constituição Federal e no Código Civil.

"Pode ser idoso, criança, adolescente, adulto, tanto faz. O que muda em relação às crianças é que, diante da menoridade, os pais vão representar sempre os filhos até eles terem 18 anos de idade. A imagem é protegida, tem proteção constitucional no artigo 5º, inciso 10, da Constituição. Até o próprio Código Civil garante a possibilidade de direito de imagem."

Conforme o professor, mesmo se a imagem for divulgada na internet, como ocorreu no caso da foto do filho de Preta, sempre haverá direito sobre ela.

"As pessoas dizem que o fato de estar na internet sem identificação não dá direito algum. Isso é um equívoco. Primeiro, porque, provavelmente alguém fotografou esse menino e daí exige a necessidade que se identifique quem fotografou. Precisa aparecer o nome, mesmo que seja alguém amador, mesmo que seja o pai. O tatuador precisaria entrar em contato com o fotógrafo para autorizar e também com a família do caso."

A Lei de Direitos Autorais, nº 9.610 de 1998, 💥não prevê expressamente a proteção às tatuagens. Contudo, segundo o professor Morato, ela prevê algo que no direito é chamado de "rol aberto", que deixa a lista em aberto para que outros casos sejam inseridos.

"Ou seja, mesmo que não esteja lá, por exemplo, 'obras de tatuagem', quando está escrito assim: 'dentre outras, entre as quais, tais como', é algo aberto que eventualmente pode identificar algo que não seja considerado como obra de arte", diz professor Morato.

A lendária foto do guerrilheiro Ernesto Che Guevara, que foi feita pelo fotógrafo cubano Alberto Korda em 1960 e repercutiu mundialmente depois de publicada na revista "Paris Match", pode ser encontrada em camisetas, chaveiros, cartões-postais e, inclusive, em tatuagens.

O astro do futebol argentino Diego Armando Maradona, por exemplo, tinha a imagem de Che tatuada no braço direito.

Segundo o jornal " The New York Times", Korda, morto em 2001 aos 72 anos, nunca recebeu direitos autorais pela imagem, mas chegou a processar uma agência de publicidade britânica pelo uso da foto para uma campanha de vodka. Ele ganhou US$ 50 mil, posteriormente doando-os para a compra de remédios para crianças.

Neste caso, se fosse aplicada a legislação brasileira quanto ao direito à imagem e ao direito de autor à tatuagem com a foto feita por Alberto Korda, teria de ser autorizada pelos herdeiros de Che Guevara e também pelos herdeiros de Korda, diz o professor.

Diego Armando Maradona, em fotos de outubro de 1997 (esq.) e em setembro de 2011. Ele tinha tatuagens de Che Guevara e de Fidel Castro, no braço e na perna — Foto: Enrique Marcarian/Reuters/Arquivo; Jumana El Heloueh/Reuters/Arquivo 2 de 4 Diego Armando Maradona, em fotos de outubro de 1997 (esq.) e em setembro de 2011. Ele tinha tatuagens de Che Guevara e de Fidel Castro, no braço e na perna — Foto: Enrique Marcarian/Reuters/Arquivo; Jumana El Heloueh/Reuters/Arquivo

Diego Armando Maradona, em fotos de outubro de 1997 (esq.) e em setembro de 2011. Ele tinha tatuagens de Che Guevara e de Fidel Castro, no braço e na perna — Foto: Enrique Marcarian/Reuters/Arquivo; Jumana El Heloueh/Reuters/Arquivo

Já sobre a remoção, o professor Morato acredita que o pedido pode ser feito pela defesa da mãe, mas ele acredita que seja improvável que o juiz determine a retirada da tatuagem.

"O que acontece é que essa pessoa pode ser alguém que estava de boa-fé, que não tinha como saber que essa foto da criança não tinha autorização. E tem o que se chama de direito à integridade física. Então, a remoção contra a vontade de alguém acho pouco provável que o juiz determine. Mas isso não exclui, por exemplo, a responsabilidade do tatuador."

A opinião é a mesma de Eduardo Tomasevicius Filho, professor da Faculdade de Direito da USP.

"O tatuador estava divulgando o trabalho, então a indenização é devida por ter feito isso. Aí qual é o problema? A diferença é que se recolhe o material do uso não autorizado. Quando é uma revista, recolhe e internet, tira do ar. A dificuldade neste caso é que essa tatuagem está no corpo de uma pessoa e ninguém pode fazer uma intervenção no corpo de uma pessoa sem a autorização dela."

O diretor da faculdade de direito da PUC, Vidal Serrano, também enfatiza sobre a indenização por danos morais e acredita que seja difícil uma condenação para que seja feita a remoção da tatuagem.

"O que cabe, na verdade, é a indenização pelo dano moral e material. A questão da remoção compulsória deixa um pouco mais complexo porque a pessoa na qual a tatuagem foi feita também não tem responsabilidade sobre isso."

Para o advogado de Preta, Djeff Amadeus, que também é diretor do Instituto de Defesa da População Negra, a família pretende conversar com a pessoa tatuada para que ele retire a imagem da criança ou cubra com outra tatuagem.

Segundo Amadeus, "se a pessoa branca que recebeu a tatuagem não se oferecer para fazer a retirada, isso configurará que ela é uma racista assumida que entende ser proprietária dos corpos negros, tal como nos tempos da escravidão".

"Esperamos que ela atue como uma pessoa branca antirracista e faça a remoção, dando, inclusive, um exemplo ao Brasil. Caso contrário, esse debate continuará em todo o Brasil e, claro, no Judiciário, tendo ele, tatuado, como alvo, inclusive também em termos indenizatórios. Afinal, o que ele quer ao manter a violação? Assumir-se como 'proprietário dos corpos negros'?"

"Convocaremos os movimentos negros a serem amicus curiae [amigos da corte] nessa ação, se necessário, pois é um debate nacional sobre antirracismo. Por que se preocupam com a autorização dos responsáveis das crianças brancas, mas não se preocupam com a autorização dos responsáveis das crianças negras?", questiona.

O tatuador Neto Coutinho pediu desculpas para a família e quer resolver a situação de forma pacífica, segundo seu advogado de defesa, Gabriel Rodrigues 💥.

Já sobre quem é a pessoa tatuada, a defesa de Neto afirmou que não iria divulgar detalhes e que trataria do assunto apenas com os envolvidos.

A organização que premiou a tatuagem afirmou ao 💥️g1 que o critério da premiação foi "estritamente técnico e artístico, julgado por uma comissão de conceituados tatuadores". Não houve entrega de dinheiro.

Sobre o tatuado, a organização enfatizou que tanto a pessoa que recebe a tatuagem quanto a imagem feita são de responsabilidade do tatuador.

Em nota, a direção da "Tattoo Week" esclareceu que tomou conhecimento do caso através dos veículos de imprensa e está em contato com Preta Lagbara, com seu advogado e o tatuador Neto Coutinho "para que o caso da tatuagem seja resolvido da melhor forma possível".

"A valorização da arte na pele com ética, responsabilidade e respeito é o objetivo da Tattoo Week. Para aumentar o conhecimento dos artistas sobre direito de imagem, a Tattoo Week realizará na 'Tattoo Week Rio 2023' workshops gratuitos com palestrantes especialistas para orientar os profissionais."

Preta Lagbara disse que, no fim do mês passado, ela foi marcada por um internauta na postagem do tatuador que comemorava o segundo lugar na premiação.

Foi então que Preta pediu ajuda para o fotógrafo Ronald Santos Cruz, que foi quem fez a imagem do filho, com a autorização dela, neste ano.

Fotógrafo e mãe da criança denunciaram uso da imagem sem autorização nas redes sociais — Foto: Reprodução/Instagram 3 de 4 Fotógrafo e mãe da criança denunciaram uso da imagem sem autorização nas redes sociais — Foto: Reprodução/Instagram

Fotógrafo e mãe da criança denunciaram uso da imagem sem autorização nas redes sociais — Foto: Reprodução/Instagram

Ronald tem mais de 80 mil seguidores nas redes sociais e é conhecido por retratar pessoas negras no Brasil. Em 2023, ele chegou a ser selecionado para exposição de fotografia pelo Centro Europeu e, em 2023, ficou entre os cem melhores fotógrafos do mundo na modalidade "retrato masculino", pelo Concurso Internacional realizado pela empresa russa 35awards.

"Eu pedi ajuda para ele compartilhar o caso, porque estava sem resposta. Ele compartilhou, achou um absurdo também, e aí repercutiu muito. Com a repercussão, o tatuador veio me procurar falando que achou a foto no Pinterest [rede social de compartilhamento de fotos], achou bonita e tatuou durante o evento", disse.

"Eu acho surreal alguém pegar foto do meu filho, seja em contexto que for, e tatuar em uma pessoa que sequer conhece ele. Então, dane-se se foi uma arte. Meu filho não é para ser comercializado, tatuado em corpos. Isso não tem possibilidade de ser aceito por mim. É um absurdo. Vou até o final. Não concordei, não achei bonito."

Foto do filho de Preta Lagbara tirada pelo fotógrafo Ronald Santos Cruz — Foto: Ronald Santos Cruz 4 de 4 Foto do filho de Preta Lagbara tirada pelo fotógrafo Ronald Santos Cruz — Foto: Ronald Santos Cruz

Foto do filho de Preta Lagbara tirada pelo fotógrafo Ronald Santos Cruz — Foto: Ronald Santos Cruz

Em seu perfil no Instagram, o fotógrafo Ronald ressaltou que não foi consultado pelo tatuador sobre o uso de sua foto.

"Como um cara branco deixa um tatuador tatuar uma imagem de uma criança negra que nunca viu na sua vida em seu corpo? Eu sou um cara que sempre fotografo muitas crianças e, uma hora ou outra, sempre chega um artista que pergunta se pode usar meu trabalho como referência. Eu sempre digo que vou ver com os pais quando não tem fins lucrativos. Mas essa tatuagem foi tão perversa, sem explicação", disse.

"Segundo o tatuador, ele achou a foto no Pinterest, achou que fosse pública e resolveu tatuar a criança num corpo branco. A gente está em 2022 e, se voltarmos lá atrás, vemos que muita coisa não mudou. Como se nossos corpos, nossos rostos, não tivessem donos. Primeiro, tem os direitos autorais de pegar a foto. Segundo, é a imagem de uma criança. Terceiro, participa de um prêmio com a foto de uma criança que achou bonito e vai lá, tatua. É sem lógica. Caso inédito de ter foto virar tatuagem sem permissão."

O advogado de defesa do tatuador, Gabriel Rodrigues, disse que o tatuador não teve má-fé e pediu desculpas para a família.

"Vamos tentar fazer um acordo e resolver a questão de forma pacífica. Estamos em tratativas, e existe esse diálogo já. Ele nunca pretendeu prejudicar ninguém. Realmente, tem toda uma questão artística e vamos tentar dialogar. Caso não se resolva no diálogo, vamos responder ao processo que poderá ser aberto", afirmou.

Em nota publicada em sua rede social, o tatuador também se retratou com a comunidade preta. 💥️Veja a nota na íntegra.

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